SE O TEMPO FOSSE OURO..., TALVEZ PUDESSES PERDÊ-LO. - MAS O TEMPO É VIDA, E TU NÃO SABES QUANTA TE RESTA.

sábado, 5 de dezembro de 2009

O Doutor OX

de Júlio Verne




Capítulo 1

O BURGOMESTRE VAN TRICASSE E O CONSELHEIRO NIKLAUSSE DISCUTEM OS PROBLEMAS DA CIDADE

- O senhor acredita? — perguntou o burgomestre.
- Acredito, sim - respondeu o conselheiro depois de alguma ponderação
- Acontece que não podemos agir de forma levia¬na — observou o burgomestre.
- Realmente, já faz dez anos que discutimos este assunto muito sério – retrucou o conselheiro Niklausse. – Vou também confessar, meu prezado Van Tricasse, que ainda não estou preparado a assumir a responsabilidade de tamanha decisão.
- Compreendo sua hesitação - comentou o burgomestre, que levou quinze minutos de reflexão an¬tes de abrir a boca. - Compreendo sua hesitação, aliás, eu a compartilho. Seria mais sábio não tomarmos de¬
cisões antes de um mais amplo exame da questão.
- Está comprovado - respondeu Niklausse — que este cargo de comissário, numa cidade tranqüila como a nossa, é completamente inútil.
O conselheiro voltou ao silêncio que durou mais ou menos meia hora. A seguir o burgomestre tocou uma sineta que emitiu um som leve como um suspiro. Ao mesmo tempo se ouviram passos leves sobre as la¬jotas do patamar. Um camundongo não poderia ter produzido menos barulho ao correr sobre um espesso tapete. A porta da sala se abriu silenciosamente: apa¬receu uma moça loira, cujos cabelos estavam presos em compridas tranças. Era Suzel Van Tricasse, a única filha do burgomestre. Entregou ao seu pai um cachim¬bo já cheio e um pequeno braseiro de cobre, e sem pronunciar uma única palavra, voltou a sair. Sua saída não provocou qualquer barulho.
O honrado burgomestre acendeu o enorme forni¬lho de seu cachimbo e logo desapareceu numa nuvem de fumaça azulada, deixando o conselheiro Niklausse mergulhado em profundas meditações.
Por volta das seis horas o conselheiro falou: Então, o que vamos decidir? Que não tomaremos qualquer decisão — respon¬deu o burgomestre.
Van Tricasse acredito que o senhor está certo.
- Eu também acho Niklausse. Vamos decidir mais tarde a respeito do comissário... Afinal, não precisamos fazê-lo dentro de um mês.
E nem mesmo dentro de um ano - respondeu Niklausse, desdobrando seu lenço e assoando o nariz com muita discrição.
O silêncio reinou durante mais uma hora. Nada aconteceu que pudesse perturbar aquele lapso na con¬versa, e nem mesmo a aparição do cachorro da casa, o honesto Lento, conseguiu interromper a meditação. Aliás, tratava-se de um cachorro exemplar: deu uma voltinha silenciosa e desapareceu.
Por volta das oito, quando a criada Lotché trouxe uma antiga lâmpada de opalina, o burgomestre per¬guntou ao conselheiro:
Temos algum outro assunto urgente a despa¬char?
- Não, Van Tricasse.
Se não me engano - observou o burgomestre, alguém me avisou que a torre da porta de Audenarde está para ruir.
Pois é confirmou o conselheiro. - Não me admiraria se algum dia ela caísse, esmagando os tran¬seuntes.
Espero - observou o burgomestre - que consi¬gamos tomar alguma decisão positiva a este respeito, antes que se verifique uma tragédia.
Eu também espero Van Tricasse.
Temos assuntos mais urgentes a resolver primei¬ro.
Sim, sem dúvida - concordou o conselheiro.
- Existe o assunto do armazém de couros.
- O armazém ainda está queimando? – perguntou o burgomestre.
- Sim, e já se passaram três semanas.
- Durante a sessão do conselho não decidimos que íamos deixar que queimasse?
- Sim, Van Tricasse, e a proposta foi sua.
- O senhor não acha que este era o meio mais simples e mais seguro para acabar com o incêndio?
- Sem dúvida.
- Então só precisamos esperar. Isto é tudo?
É tudo — respondeu o conselheiro, esfregando a testa como para ter certeza que não estava esquecen¬do nada.
- Ah! - exclamou o burgomestre. - O senhor não ouviu falar também a respeito de um vazamento de água que ameaça inundar as partes mais baixas do bairro Saint Jacques?
- De fato - respondeu o conselheiro. — É lastimável que o vazamento de água não tenha acontecido um pouco mais acima do armazém de couros. Poderia ter extinguido o incêndio de maneira bastante natural, e poderia nos ter poupado gastos e discussões.
Depois de alguns minutos o conselheiro continuou: Ora, nem falamos em nosso assunto mais importan¬te.
- Assunto importante? Que assunto importante?
- perguntou o burgomestre.
O mais importante de todos os assuntos. A ilu¬minação da cidade.
Oh, estou vendo - comentou o burgomestre. -Entretanto, se a memória não me engana, trata-se da iluminação do doutor Ox? Certo.
- Então?
Tudo procede bem, Niklausse - falou Van Tricasse. - Estão colocando os canos e a usina já está pronta.
Talvez fomos um pouco apressados neste assun¬to - disse o conselheiro.
- É possível, mas temos uma justificação válida: o doutor Ox pagou todas as despesas para poder fazer a experiência. Não precisaremos gastar um centavo.
- É uma ótima justificação. Aliás, precisamos nos manter a altura dos progressos deste século. Se a experiência for feliz, Quinquendone será a primeira ci¬dade dos Flandres iluminada com o gás oxi... Como é mesmo o nome?
Gás oxi-hídrico.
- Pois é, gás oxi-hídrico.
A este ponto Lotché abriu a porta e anunciou ao burgomestre que o jantar estava servido.
O conselheiro Niklausse se levantou para se despe¬dir de Van Tricasse que estava com fome depois do trabalho exaustivo de tomar decisões importantes. Acordaram em reunir o conselho dos anciões em data bastante afastada, para decidir se era o caso de tomar decisão provisória sobre o assunto realmente urgente representado pela torre que ameaçava ruir.
Os dois dignos administradores se encaminharam em direção à porta que dava para a rua, parando fre¬quentemente.
Lotché, que levava a lâmpada para iluminar o ca¬minho, estava a ponto de retirar a barra de segurança da porta, quando ouviu um barulho estranho.
Isto mesmo: apesar disto ser meio estranho, estava-se ouvindo um barulho, um barulho de verdade que vinha do exterior, e era um barulho como a cidade in¬teira não ouvia desde 1513, ano em que os espanhóis conquistaram a torre principal. Este barulho ribom¬bou no interior da residência de Van Tricasse, desper¬tando todos os ecos adormecidos. Alguém estava ba-tendo com insistência e com força. As batidas eram acompanhadas por gritos. Todos conseguiram ouvir claramente estas palavras:
- Senhor Van Tricasse! Senhor burgomestre! Abra a porta, depressa!
O burgomestre e seu conselheiro se entreolharam, estupefatos.
Entretanto, as batidas, os gritos e as palavras se re¬petiam. Lotché recuperou a calma e disse:
- Quem é?
- Sou eu! Eu!
- Eu, quem?
- O comissário Passauf!
O comissário Passauf! Era mesmo o personagem cujo cargo devia ser extinguido, e que estava sendo discutido há dez anos. O que estava acontecendo? Os borgonheses estariam invadindo Quinquendone, como fizeram no século XIV? Só um acontecimento de igual gravidade poderia desnortear a este ponto o co¬missário Passauf, que em matéria de fleuma e de cal¬ma ganhava até do burgomestre.
Van Tricasse deu um sinal - estava, de fato, inca¬paz de articular uma palavra e a barra foi retirada da porta.
O comissário Passauf entrou precipitadamente. Pa¬recia trazido por um furacão.
O que foi que aconteceu, senhor comissário? — perguntou Lotché, uma moça muito direita que não costumava perder a cabeça, nem mesmo em circuns¬tâncias angustiantes.
- Quer saber o que aconteceu? - perguntou Passauf, cujos olhos arregalados mostravam que estava
realmente emocionado. - Estou chegando da casa do doutor Ox. Havia uma recepção e...
— E então? — perguntou o conselheiro.
Assisti a uma discussão tão grave que... Senhor burgomestre, foi uma discussão política!
- Política! — repetiu Van Tricasse, esfregando a peruca.
- Política! - repetiu o comissário Passauf. - É um fato que não se verifica há cem anos! A discussão tornou-se acalorada.O advogado André Schut e o médico Dominique Custos se enfrentaram com tamanha violência que receio um duelo.
- Um duelo! — gritou o conselheiro. — Um duelo
em Quinquendone! Mas o que foi que eles disseram, afinal?
- As palavras foram as seguintes: "Senhor advogado, falou o médico, o senhor está indo um pouco longe demais, e receio que o senhor não está medindo convenientemente suas palavras!"
O burgomestre Van Tricasse juntou as mãos e o conselheiro ficou pálido. O comissário balançou a ca¬beça. Era uma frase muito provocatória, e fora pro¬nunciada por duas pessoas importantes da cidade!
- Este médico, o senhor Custos - murmurou o burgomestre - é deveras um homem muito perigoso, um exaltado! Venham comigo, senhores!
O conselheiro Niklausse e o comissário Passauf vol¬taram com o burgomestre para o gabinete.

Capítulo 2

O DOUTOR SE REVELA UM CIENTISTA AUDACIOSO

Quem era o personagem conhecido pelo nome de doutor Ox?
Sem dúvida, era um homem original, mas ao mes¬mo tempo era um sábio audacioso, um fisiologista cu¬jos trabalhos eram conhecidos e apreciados pelos sá¬bios da Europa inteira.
O doutor Ox era um homem encorpado, de estatu¬ra mediana; não podemos dizer ao certo qual era a sua idade. Por outro lado, isto não interessava, como não interessa conhecer qual era a sua nacionalidade: basta saber que era um homem esquisito, de sangue quente e buliçoso.
Mas este doutor Ox, que se propunha a iluminar toda a cidade as suas próprias custas, era rico?
É possível, caso contrário não teria tomado esta iniciativa,
O doutor Ox tinha chegado a Quinquendone há cinco meses, acompanhado pelo seu técnico, um ho¬mem alto e magro, chamado Gedeon Ygene.
Aparentemente o doutor Ox desejava iluminar uma cidade que precisava de luz ,”sobretudo à noite", como dizia o comissário Passauf. Por conseguinte construíra uma usina para a produção do gás. Os gasômetros estavam prontos para funcionar e os tubos que corriam debaixo das calçadas, dentro de pouco tempo seriam alongados, para penetrar nos edifícios públicos e até nas residências dos cidadãos mais progredidos.
Van Tricasse, que era o burgomestre e Niklausse, que era o seu conselheiro, tinham autorizado a intro¬dução desta iluminação moderna em suas residências.
Esta iluminação não seria produzida por meio de gás obtido pela combustão do carvão de pedra, tão vulgar, mas por meios mais modernos, ou seja, pelo gás oxi-hídrico que produziria uma luz vinte vezes mais intensa.
O doutor Ox, um químico habilidoso, sabia como produzir este gás em grande quantidade e a pouco preço. Uma corrente elétrica atravessava duas grandes cubas cheias de água, e o líquido era decomposto em oxigênio e hidrogênio. O oxigênio era levado para um lado e o hidrogênio, em quantidade duas vezes supe¬rior à de seu antigo associado, era levado para o lado oposto. Ambos eram guardados em reservatórios sepa¬rados. O cuidado tornava-se necessário, porque a mistura poderia provocar uma explosão terrível ao conta-to de uma chama. Os tubos se destinavam a levá-los separadamente até os bicos, construídos de maneira a evitar qualquer explosão. Deste jeito poder-se-ia obter uma chama muito brilhante, cuja luz poderia rivalizar com a luz elétrica.
Sem dúvida nenhuma a cidade de Quinquendone estava a ponto de ganhar uma iluminação fabulosa, e ainda de graça. Entretanto este detalhe era o que me¬nos preocupava o doutor Ox e seu técnico, como ve¬remos em seguida.
No dia seguinte à barulhenta invasão da casa do burgomestre por parte do comissário Passauf, o dou¬tor Ox e Gedeon Ygene estavam conversando no gabi¬nete do doutor, no prédio principal da usina.
- Então, Ygene -- gritou o doutor, - o que o senhor me diz destes bons cidadãos de Quinquendone, cujo sangue é tão frio que eles possuem menos vivaci¬dade dos corais e das esponjas! Viu, ontem? Estavam discutindo, estavam se provocando! E isto é apenas o começo. Coisas piores poderão acontecer quando
eles receberem doces maiores. Sua metamorfose moral está apenas começando.
- É verdade, mestre - respondeu Gedeon. – A experiência está começando de maneira promissora.
Não sei o que poderia ter acontecido se não tivesse me lembrado de fechar a torneirinha.
— O senhor ouviu o advogado Schut e o médico Custos? - perguntou o doutor Ox. — A frase não foi muito contundente, mas saindo da boca de um cida¬dão de Quinquendone, ela equivale a uma injúria ho¬mérica. Ah, estes Flamengos! Poderemos mudá-los de maneira radical!
- Eles se tornarão simplesmente uns ingratos respondeu Gedeon Ygene com a calma de quem sabe avaliar o gênero humano de maneira isenta.
- Ora, não importa sua gratidão — retrucou o
doutor Ox. - O que importa é que a experiência tenha sucesso.
- Entretanto - perguntou o técnico com ar malicioso, - será que estes bons cidadãos ficarão com os pulmões um pouco desorganizados, depois de serem excitados por meio de seus aparelhos respiratórios?
- Paciência! — exclamou o doutor. – Fazemos isto no interesse da ciência. Que tal se as rãs ou os cachorros se recusassem em servir para experiências de vivisseção?
É nossa opinião que, se alguém fizesse uma pes¬quisa entre as rãs e os cachorros, poderia constatar en¬tre eles uma aversão às práticas de vivisseção, mas o doutor Ox achava que sua argumentação era irrefutá¬vel e soltou um suspiro satisfeito.
- Acho que o senhor está certo, mestre - respondeu Gedeon Ygene. - Os cidadãos de Quinquendone são os melhores espécimes que poderíamos encontrar.
- O senhor sentiu o pulso deste pessoal?
- Mais de cem vezes.
- E qual é a média das pulsações?
- Não chega a cinqüenta por minuto. Você precisa compreender: esta é uma cidade na qual, há um sécu¬lo, não há discussões, onde os carreteiros não prague¬jam, onde os cavalos não fogem, onde os cachorros não mordem e os gatos não arranham. Nesta cidade a polícia e os tribunais estão desocupados. Nesta cidade ninguém esquenta a cabeça por motivo nenhum, nin¬guém gasta um pingo de paixão! Esta é uma cidade na qual, há trezentos anos, ninguém deu um soco ou um pontapé! Veja bem, mestre Ygene: isto não pode con¬tinuar e vamos tratar de modificar as coisas.
- Muito bem, muito bem - exclamou o técnico com entusiasmo. - E o senhor analisou o ar desta cidade, mestre?
- É claro que sim. Setenta e nove partículas de azoto e vinte e uma partículas de oxigênio, um pouco de ácido carbônico e vapor aquoso em quantidade variável. Estas são as proporções normais.
- Muito bom, muito bom - repetiu mestre Ygene. – A experiência será em grande estilo e será uma experiência decisiva.
- E se ela for decisiva - acrescentou o doutor Ox, com expressão de triunfo - vamos reformar o mundo!

Capítulo 3

UMA VISITA DO BURGOMESTRE E DO CONSELHEIRO AO DOUTOR OX E AS CONSEQUÊNCIAS DESTA VISITA

- O conselheiro Niklausse e o burgomestre passa¬ram uma noite agitada. O grave acontecimento na re¬sidência do doutor Ox provocou neles uma violenta insônia. Quais poderiam ser as conseqüências daquela discussão? Ninguém conseguia avaliá-las. Seria neces¬sário tomar uma providência? A autoridade municipal seria obrigada a intervir? Seria necessário baixar um decreto para que acontecimentos deste teor não mais se repetissem?
Todas essas dúvidas não podiam evitar de pertur¬bar aquelas criaturas de caráter pacífico. Por este motivo, os dois personagens "decidiram" na véspera se rever logo no dia seguinte.
No dia seguinte, antes do almoço, o burgomestre foi até a casa do conselheiro Niklausse. Encontrou o amigo muito mais calmo.
- Novidades? - perguntou Van Tricasse.
- Nada de novo desde ontem - respondeu o conselheiro.
- E o médico Dominique Custos?
- Só ouvi falar a respeito do advogado André Schut.
Conversaram durante uma hora, e o resumo de quanto disseram caberia em três linhas, mas não acre¬ditamos interessante anotá-lo: como resultado, o con¬selheiro e o burgomestre decidiram visitar o doutor Ox, para conseguir dele algumas explicações, sem apa¬rentemente interrogá-lo.
Tomaram a decisão contrariando todos os seus há¬bitos e também acharam que era necessário passar imediatamente à ação. Saíram de casa e se dirigiram para a usina do doutor Ox, situada nos arredores da cidade, perto da porta de Audinarde - a mesma porta cuja torre ameaçava ruir.
O conselheiro e o burgomestre, por este motivo, deram uma volta maior, desviando-se prudentemente da torre e ficaram a observá-la de uma certa distância.
- Acho que vai mesmo ruir - disse Van Tricasse.
- Eu também acho — concordou Niklausse.
- A não ser que a escoremos - acrescentou Tricasse. - Entretanto, devemos escorá-la? Este é o problema.
- Pois é, é mesmo um problema — respondeu Niklausse.
Logo chegaram à entrada da usina. - O doutor Ox está? — perguntaram.
O doutor Ox estava sempre disposto a receber as mais altas autoridades da cidade e assim elas foram le¬vadas até seu gabinete sem nenhuma demora.
Entretanto, tiveram que esperar uma hora antes que ele aparecesse, e precisamos acreditar que foi as¬sim, porque o burgomestre, contrariando seus hábi¬tos, mostrou uma certa impaciência — e seu compa¬nheiro o imitou.
Finalmente o doutor Ox entrou, pedindo descul¬pas e explicando que estava estudando um plano para um gasômetro e por isto...
Por outro lado, tudo procedia da melhor maneira. Os condutos destinados à passagem do oxigênio já es¬tavam colocados. Dentro de poucos meses a cidade te¬ria um esplêndido sistema de iluminação. As duas au-toridades já podiam ver os terminais dos condutos nas paredes do gabinete.
O doutor decidiu-se por fim a perguntar qual era o motivo que lhe proporcionava a honra da visita do burgomestre e do conselheiro.
- Só queríamos vê-lo, doutor, só queríamos vê-lo - respondeu Van Tricasse. -- Há tanto tempo não vía¬mos o senhor. Em nossa boa cidade de Quinquendone não estamos acostumados a sair muito. Poupamos os passos e os movimentos. É uma felicidade quando na¬da acontece para quebrar a rotina...
Niklausse observou o amigo. O burgomestre nunca tinha falado tanto — ou, pelo menos, nunca tinha fa¬lado tanto sem espaçar as sentenças e separá-las por meio de largos intervalos. O próprio Niklausse sentia, aliás, uma vontade irresistível de falar.
O doutor Ox observava atentamente o burgomestre e o conselheiro, com uma expressão maliciosa.
Van Tricasse se leVantou, deu alguns passos e vol¬tou a parar em frente ao doutor Ox.
- Então, diga-me, doutor - perguntou com uma certa vivacidade, - dentro de quantos meses o senhor acha que poderá concluir as obras?
- Dentro de três ou quatro meses, senhor burgomestre.
— Três ou quatro meses! É muito tempo — disse Van Tricasse.
— Tempo demais! - acrescentou Niklausse que sentia não poder mais ficar parado e também já estava em pé.
- Precisamos deste tempo para terminar as obras - explicou o doutor Ox. - Os operários que escolhe¬mos entre a população de Quinquindone não são muito rápidos.
- Como assim, não são rápidos? - gritou o burgomestre que parecia achar isto uma ofensa.
- Realmente, senhor burgomestre - insistiu o doutor Ox. - Um operário francês pode, num só dia, fazer o trabalho de seis operários locais. O senhor sabe como é: eles são Flamengos legítimos...
— Flamengos! — gritou o conselheiro Niklausse, cerrando os punhos. -Posso saber, senhor, o significado que o senhor atribui a esta definição?
- Ora, o mesmo significado... amável que todo mundo lhe atribui - falou o doutor Ox, sorrindo.
- Um momento, senhor! - exclamou o burgomestre, dando alguns passos agitados pelo gabinete. -Não gosto destas insinuações. Os operários de Quinquendone valem os operários de qualquer outra cida¬de do mundo, e não precisamos procurar padrões em Londres ou Paris. É minha intenção pedir que o se¬nhor acelere as obras. Nossas ruas estão num estado lastimável por causa da colocação dos tubos, e a falta de pavimentação atrapalha o trânsito. O comércio acabará por se queixar. Sou o administrador responsá¬vel e não pretendo me expor á críticas que seriam muito justificadas!
Que burgomestre corajoso! Falara em comércio e em trânsito, e estas palavras que normalmente não usava, poderiam até lhe escaldar os lábios. O que estava acontecendo?
- E por outro lado - continuou Niklausse — a cidade não pode ficar por mais tempo sem iluminação.
- Entretanto - observou o doutor — uma cidade que espera pela iluminação há mais ou menos oito ou novecentos anos...
— Esta é só uma razão a mais, senhor — declarou o burgomestre, pronunciando as sílabas uma por uma.
— Outros tempos, outros hábitos! O progresso avança e não pretendemos ficar para trás. Pretendemos ver nossas ruas iluminadas dentro de um mês, caso contrário o senhor pagará uma boa indenização para cada dia de atraso! Diga, o que aconteceria se tivéssemos algum rebuliço, acobertado pelas trevas?
- Afinal - proclamou Niklausse - basta uma minúscula fagulha para inflamar um Flamengo! Um Flamengo é como uma chama!
— A propósito — interrompeu o burgomestre — o comissário de polícia Passauf nos comunicou que on¬tem à noite houve uma discussão em sua própria resi¬dência, doutor Ox. Estou enganado, ou tratava-se re¬almente de uma discussão política?
- Sim, senhor burgomestre, é verdade — confir¬mou o doutor Ox que estava fazendo esforços para disfarçar um sorriso de satisfação.
— Não foi uma discussão entre o médico Dominique Custos e o advogado André Schut?
- Sim, senhor conselheiro, mas as expressões realmente não eram graves.
- Não eram graves! — gritou o burgomestre. — Pois o senhor acha que não é grave quando um homem diz a um outro que ele não sabe medir suas palavras. Será que o senhor não sabe que aqui, em Quinquendone, não precisa mais nada para chegar a conseqüências im¬ previsíveis? Afinal, senhor, se o senhor ou qualquer outra pessoa tivessem a ousadia de me falar deste jei¬to...
- Ou a mim! - interferiu o conselheiro.
Enquanto pronunciavam estas palavras, as duas au¬toridades olhavam para o doutor, mantendo os braços cruzados sobre o peito. Seus cabelos estavam eriçados. Davam a impressão de estarem prontos a passar à ação ao menor gesto, ou mesmo se um olhar fizesse supor que o doutor não partilhava esta opinião.
O doutor Ox, entretanto, nem piscou.
— De qualquer forma - continuou o burgomestre, — quero deixar bem claro que considero o senhor res¬ponsável por qualquer coisa que aconteça em sua ca¬
sa. Sou responsável pela tranqüilidade desta cidade e não desejo que fique comprometida. Os acontecimentos de ontem não podem se repetir, caso contrário se¬rei obrigado a tomar medidas cabíveis. O senhor me entendeu? Responda doutor!
Enquanto falava, o burgomestre, impelido por uma extraordinária excitação, estava elevando a voz. Via-se claramente que o digno Van Tricasse estava furioso, e sem dúvida suas palavras podiam ser ouvidas também do lado de fora. Finalmente, ao ver que o doutor Ox não respondia, ficou exasperado.
— Venha comigo, Niklausse — falou.
O burgomestre arrastou consigo seu conselheiro e bateu a porta com tamanha violência que o prédio es¬tremeceu.
Depois de dar alguns passos ao ar livre, as duas au¬toridades começaram a se acalmar. Seus passos se tor¬naram mais vagarosos e suas expressões se modifica¬ram. Seus rostos perderam a cor acesa e voltaram a ser apenas corados.
Quinze minutos depois de ter saído da usina, Van Tricasse observava com sua costumeira voz suave:
— Este doutor Ox é um homem muito amável, é sempre um grande prazer revê-lo.

Capítulo 4

ONDE O "ANDANTE" SE TORNA "ALLEGRO" E OS "ALLEGRO"
SE TRANSFORMAM EM "VIVACE"

O encanamento que deveria levar o gás oxi-hídrico aos principais prédios da cidade estava sendo coloca¬do com presteza. Os tubos e todas as ramificações de¬sapareciam aos poucos sob as ruas de Quinquendone. Mas ainda faltavam os bicos, porque sua fabricação era bastante difícil. A mais, era necessário mandar fazê-los no estrangeiro. O doutor Ox trabalhava o tempo todo: ele e seu técnico Ygene não perdiam um minuto, apressando os operários, rematando as delica¬das instalações dos gasômetros, alimentando dia e noi¬te enormes baterias que decompunham a água por meio de uma forte corrente elétrica. Pois é, isto mesmo: o doutor já estava produzindo seu gás, apesar dos encanamentos ainda não estarem prontos, e a coisa poderiam até parecer estranha. Entretanto, dentro de pouco tempo - assim todos pensavam e esperavam o doutor Ox inauguraria sua esplêndida iluminação no teatro municipal.
Quinquendone, de fato, possuía um teatro muni¬cipal, um prédio imponente cujas disposições internas e externas lembravam todos os estilos. Ó teatro era, ao mesmo tempo, bizantino, gótico, romano, renas¬centista: tinha portas em arco, janelas em ogiva, cla¬rabóias com razões e pequenos campanários fantasio¬sos. Em uma palavra, era um espécime que reunia to¬dos os gêneros, meio Parthenon e meio Café de Paris, mas isto não era de se admirar, porque sua construção começara com o burgomestre Ludwig Van Tricasse, em 1175, e terminara no tempo do burgomestre Natalis Van Tricasse, em 1837. Sua construção requereu setecentos anos, e durante o passar dos séculos tinha se adaptado sucessivamente às modas das épocas. Mas pouco importa: tratava-se de um belo edifício, cujas colunas romanas e abóbadas bizantinas não iriam con¬trastar excessivamente com a iluminação de gás oxi-hídrico.
No teatro municipal de Quinquendone podia-se as¬sistir a espetáculos de todos os tipos, mas principal¬mente a óperas e óperas cômicas. Entretanto, os com¬positores nunca teriam reconhecido suas próprias obras, porque os movimentos eram radicalmente mo¬dificados.
De fato, como em Quinquendone não se fazia nada depressa, as óperas dramáticas tiveram que ser adapta¬das ao temperamento quinquendonense. Apesar de as portas do teatro se abrirem por volta das quatro horas da tarde e se fecharem às dez da noite, nunca tinha si¬do possível representar mais de dois atos de Roberto o Diabo, de Os Huguenotas, ou de Guilherme Tell, durante estas seis horas. Estas óperas, em geral, eram representadas em três noites sucessivas, porque a exe¬cução destas obras-primas era muito vagarosa. Os vivace, no teatro de Quinquendone, eram esticados até fi¬carem verdadeiros adágios. Os allegros também eram bastante esticados. Para darmos um exemplo, a rápida ária de Fígaro, logo no começo do primeiro ato do Barbeiro de Sevilha, durava cinqüenta e oito minutos — isto, quando o cantor era um apressadinho.
Obviamente, os artistas que vinham de outros luga¬res, tiveram que se adaptar a esta moda, mas como eram muito bem pagos, não se queixavam.
Os artistas estrangeiros, aliás, costumavam assinar contrato com o diretor do teatro municipal de Quin¬quendone quando desejavam descansar de trabalho em outros palcos, e parecia que nada poderia modi¬ficar estes hábitos inveterados. Mas, quinze dias após o incidente Schut-Custos, um acontecimento inespe¬rado trouxe mais inquietação à população.
Era um sábado, dia de ópera. Ainda não era o dia da inauguração da nova iluminação: o encanamento já chegava até o salão, mas os bicos ainda não estavam instalados, e as velas ardiam no grande lustre, projetando uma claridade mansa entre os inúmeros espec¬tadores que se apinhavam no teatro. As portas tinham sido abertas à uma hora da tarde, e às três a sala já estava meia cheia. Esta pressa parecia preanunciar uma bela representação.
- O senhor irá ao teatro hoje à noite? – perguntou o conselheiro naquela mesma manhã.
— Não posso faltar — respondeu Van Tricasse. — Vou levar a senhora Van Tricasse e também nossa filha Suzel. Ambas gostam de boa música.
- A senhorita Suzel virá? - perguntou o conselheiro.
— Sem dúvida, Niklausse.
- Neste caso meu filho Frantz será um dos primeiros da fila - respondeu Niklausse.
- Um rapaz ardente, Niklausse - ponderou o burgomestre. - Um rapaz buliçoso! Precisará vigiá-lo.
— Van Tricasse, meu filho ama sua charmosa Suzel.
— Está bem, Niklausse, eles poderão se casar. Afinal, já estamos de acordo a respeito deste casamento. O que mais ele quer?
- Ele não quer nada, Van Tricasse, ele não quer nada, é um bom rapaz. Mas não desejo falar mais. Só direi que Frantz não será o último a comprar seu ingresso!
Ah, esta mocidade ardente! - comentou o burgomestre e sorriu ao se lembrar do passado. — Nós já fomos assim, meu querido conselheiro. Nós também já amamos! Também ficamos em filas! Então, nos veremos esta noite. A propósito, o senhor sabia que este Fioravanti é um grande artista? Viu quantos cartazes o saudavam nas paredes? Aposto que ele não se esquecerá de seu sucesso em Quinquendone. — O cantor em questão era, de fato, o célebre tenor FioraVanti, cujo talento de grande virtuoso, a técnica perfeita e o tim¬bre agradável provocavam o maior entusiasmo entre o público da cidade.
Há três semanas, Fioravanti conseguira um sucesso enorme na ópera Os Huguenotas. O primeiro ato, exe¬cutado ao gosto dos quinquedonienses, ocupou toda uma noite da primeira semana do mês. Uma outra noite da segunda semana, esticada por alguns andan¬tes sem fim, valera ao célebre tenor ovações entusiásti¬cas. Seu sucesso aumentou ainda durante a execução do terceiro ato da famosa ópera de Meyerbeer. Entre¬tanto, todos esperavam agora Fioravanti no quarto ato, e a execução seria naquela mesma noite. O públi¬co estava impaciente. Aquele dueto entre Raoul e Valentina, aquele hino de amor a duas vozes, entremea¬do de suspiros, aquele abraço em que se multiplica¬vam os crescendo, os stringendo, os se apresse mais um pouco e os piu crescendo, enquanto tudo isso era cantado vagarosamente, com ponderação, de maneira interminável! Ah, que maravilha!
Às quatro horas da tarde, a sala estava cheia. Nas primeiras fileiras podia-se ver o burgomestre Van Tri¬casse, sua filha Suzel Van Tricasse, a senhora Van Tri¬casse e a amável Tatanémance, com um boné verde maçã; a pouca distância estavam o conselheiro Ni¬klausse e sua família, inclusive o apaixonado Frantz. Lá estavam também as famílias do médico Custos, do advogado Schut, de Honoré Syntax, o juiz, e do diretor da companhia de seguros Norbert Soutman,o po¬deroso banqueiro Collaert, o coletor de impostos Rupp e o diretor da Academia Jerome Resch. Além disso, estavam presentes o comissário cívico e um porção de outras pessoas importantes que não é necessário destacar.
Em geral, os quinquendonienses costumavam ficar em silêncio antes que o pano se levantasse: alguns liam o jornal, outros trocavam poucas palavras em voz baixa, enquanto outros ainda procuravam seus lugares sem pressa e sem barulho, e todos lançavam olhares ao redor, para ver as beldades sentadas nas galerias.
Entretanto, naquela noite um observador atento poderia perceber uma animação fora do comum antes mesmo que o pano se levantasse. Pessoas que costu¬mavam ficar imóveis, estavam se remexendo. As da¬mas agitavam os leques com rapidez extraordinária. Um ar mais gostoso parecia encher todos aqueles pei¬tos. Todo mundo respirava com mais entusiasmo. Al¬guns olhares brilhavam e se pareciam com as chamas do lustre que, na verdade, pareciam queimar com muito mais brilho que de costume. A sala parecia mais iluminada, mais clara, apesar da nova iluminação ainda não estar funcionando. Ah, seja estivesse pron¬ta! Mas os bicos ainda não estavam instalados. Final¬mente a orquestra tomou seus lugares, O primeiro vio¬lino passou entre os colegas, tocando um lá discreto para todo mundo afinar o instrumento. Os instrumen¬tos de cordas, os instrumentos de sopro e os de per¬cussão finalmente acertaram o tom. O diretor da or¬questra ficou a esperar o sinal para começar a execu¬ção.
Ouviu-se o sinal. Começava o quarto ato. O alegro appassionato da abertura começou a ser tocado como de costume, com uma lentidão majestosa que teria indignado Meyerbeer, mas que os quinquendonienses apreciavam.
Não demorou muito, porém, para o diretor de or¬questra perceber que já não controlava os músicos. Em geral, eram calmos e obedientes, mas agora estava começando a ficar sempre mais difícil refreá-los. Os instrumentos de sopro começavam a mostrar clara tendência a apressar o tempo e precisava governá-los com ma"o firme, para que não tomassem a dianteira deixando para trás os instrumentos de corda, porque, do ponto de vista harmônico, isto produziria um efei¬to lamentável.
A este ponto, Valentina iniciou seu recitativo:
Estou sozinha aqui...
mas logo começa a se apressar. O diretor de orquestra e todos os instrumentos a seguem - talvez, sem perce¬ber. Quando Raoul aparece na porta dos fundos, en¬tre o momento em que Valentina se aproxima dele e o momento em que o esconde no quarto ao lado, pas¬sa apenas um quarto de hora, enquanto durante os outros espetáculos, segundo a tradição do teatro de Quinquendone, este trecho de trinta e sete compas¬sos durava exatamente trinta e sete minutos.
Saint-Bris, Nevers, CaVannes e os outros católicos entram em cena de forma um pouco precipitada. O compositor indica um allegro pomposo na partitura. A orquestra e os cantores observam o allegro, mas se esquecem do pomposo, e no trecho do conjunto, quando acontece a conjura e a bênção dos punhais, o allegro já não pode mais ser controlado. A orquestra e os cantores iniciam uma verdadeira corrida. Mas o pú¬blico não reclama, muito pelo contrário: percebe-se que ele também está sendo levado, que está vivendo aquele trecho que expressa suas próprias aspirações:
Como eu, desejais livrar o pais
de uma guerra ímpia...
Todos prometem, todos juram. Nevers quase não consegue cantar que "entre seus antepassados há mui¬tos soldados e nenhum assassino". Quase não conse¬gue terminar. Os outros chegam correndo e juram de¬pressa que "agirão todos juntos". Saint-Bris dispara loucamente chamando os católicos para a vingança. Os três frades que trazem cestas repletas de echarpes brancas, entram correndo nos aposentos de Nevers, sem se lembrar que devem proceder vagarosamente. Todos os protagonistas já desembainham espadas e punhais e os três frades abençoam tudo correndo. Os sopranos, os tenores, os bassos prorrompem gritando num allegro furioso, e o compasso de seis-oito dramá¬tico se transforma num seis-oito de quadrilha. A se¬guir, todos saem, aos berros de:
Á meia noite
Sem barulho!
Deus o quer!
Sim!
Á meia noite!
A este ponto, o público fica todo de pé. Todos se agitam nos camarotes, nas galenas e na platéia. Parece que todos os espectadores, encabeçados pelo burgo-mestre Van Tricasse, querem se precipitar no palco pa¬ra se reunir aos conjurados e aniquilar os huguenotas, que por sinal, são seus correligionários. Todos batem palmas, chamam, gritam. Tatanémance agita o seu bo¬né' verde maçã com uma mão febril. As chamas das ve¬las projetam uma claridade brilhante.
Raoul, em vez de levantar vagarosamente a cortina, estraçalha o pano e se depara com Valentina.
Até que enfim! Este é o grande dueto, que na par¬titura leva a anotação allegro vivace. Raoul não espe¬ra pelas perguntas de Valentina, e Valentina não espe¬ra pelas respostas de Raoul. Aquele trecho magnífico:
O perigo encalça
E o tempo voa...
se transforma num rápido dois-quatro, destes que fi¬zeram a fama de Offenbach, quando manda dançar conjurados quaisquer. O andante amoroso\
Tu falastes!
Sim, tu me amas...
sai num vivace furioso.
Inutilmente Raoul se esganiça:
Fale mais e prolongue
o inefável sono de meu coração...
Percebe-se que está sendo devorado por uma cha¬ma esquisita. Seus agudos explodem de forma assusta¬dora. Ele gesticula, se agita, pula.
Finalmente, o dueto que encerra este ato sublime:
Chega de amor, chega de ebriedade,
O remorso me devora...
que na intenção do compositor devia ser executado allegro con moto, transcorre num prestíssimo endia brado. Dá a impressão de um trem expresso. Volta à badalação dos sinos. Valentina cai desmaiada e Raoul pula pela janela.
Não era sem tempo. A orquestra, visivelmente em¬briagada, não consegue mais continuar. A batuta do diretor está quebrada sobre o teto do ponto. As cor¬das dos violinos estão arrebentadas e os arcos estão tortos. O timbalista. Enfurecido, rachou os tímbalos, o contra baixista está empoleirado sobre o contrabai¬xo. O clarinetista engoliu a lingüeta de seu instrumen¬to.
A corrediça do trombone está torta e o tocador de corneta ficou com a mão presa.
E o público? ... O público arfa, suspira, gesticula, berra. Os rostos estão vermelhos, acesos, como se os corpos estivessem queimando por dentro. Todo mun¬do se empurra e se atropela para sair, os homens estão sem chapéu, as mulheres sem sobretudo. Os corredo¬res estão cheios de gente se empurrando, todos se amassam ao lado das portas, as pessoas brigam, alguns trocam socos. Ninguém respeita qualquer autoridade, ninguém reconhece o burgomestre, todos são iguais, tomados por uma excitação inacreditável...
Entretanto, quando todos chegam à rua, dentro de poucos instantes voltam à calma costumeira e rumam tranquilamente para suas casas, com uma lembrança um pouco confusa dos acontecimentos.
O quarto ato de Os Huguenotas que, das outras ve¬zes, durava exatamente seis horas, naquela tarde co¬meçara às quatro e meia em ponto e já estava termina¬do quando ainda faltavam doze para as cinco.
Tivera uma duração total de dezoito minutos.

Capítulo 5

UMA VALSA ALEMÃ, ANTIGA E SOLENE, SE TRANSFORMA
NUM TURBILHÃO

Mesmo voltando à calma habitual, depois de sair do teatro, e apesar de terem voltado tranquilamente para suas residências, guardando apenas uma tontura passageira, os espectadores daquela tarde tinham pas¬sado por uma experiência extraordinária, por uma exaltação desacostumada e se sentiam cansadíssimos, com o corpo todo moído. Por conseguinte, caíram em suas camas e adormeceram.
No dia seguinte, todos voltaram a se lembrar do acontecimento de maneira diferente. De fato, uns ti¬nham perdido o chapéu, outros constataram que seu melhor terno tinha se rasgado na confusão. As mulhe¬res acharam falta de um sapato ou de um xale. Os bons burgueses começaram a se lembrar do que tinha acontecido, e com a lembrança surgiu um pouco de vergonha por causa daquela efervescência inqualificá¬vel. Ninguém comentou o acontecimento: todos só queriam esquecer.
O personagem mais estupefato de toda a cidade era o burgomestre Van Tricasse. Quando acordou na ma¬nhã seguinte não conseguiu encontrar sua peruca. Lotche procurou em todos os cantos, mas sem resul¬tado. A peruca ficara no campo de batalha. Anunciar a falta da peruca pelo trombeteiro juramentado da ci¬dade, chamado Jean Mistrol... não, o burgomestre achou que não valia a pena. Preferia deixar de usar a peruca a se expor às fofocas: afinal era o burgomes¬tre.
O digno Van Tricasse raciocinava assim, deitado em sua cama, sentindo o corpo moído, a cabeça pesada, a língua inchada e o peito ardendo. Não tinha vontade de se levantar, mas mesmo assim seu cérebro naquela manhã trabalhava mais de quanto tivesse trabalhado durante os últimos quarenta anos. O honrado magis¬trado estava examinando, um a um, todos os inciden¬tes acontecidos durante a extraordinária representa¬ção. Comparava os fatos com outros, verificados du¬rante a recepção na residência do doutor Ox. Procu¬rava as causas daquela estranha excitação que tinha se manifestado entre os cidadãos mais respeitáveis.
- O que diabo está acontecendo? - perguntava a si próprio. — Qual é a razão desta vertigem que se apoderou de minha pacata cidade? Será que estamos todos em ponto de ficar loucos? Esta cidade se trans¬formará num vasto manicômio? Afinal, ontem à noite estávamos todos lá: autoridades, conselheiros, juizes, advogados, médicos, acadêmicos, e se minha memória não me engana, todos ficaram tomados por um ata¬que de loucura furiosa. Será que isto foi por causa da música, realmente infernal? Não encontro uma expli¬cação. Entretanto não comi e não bebi qualquer coisa que pudesse me fazer mal. Ontem, no almoço, comi uma fatia de vitela bem passada, um pouco de espina¬fre, ovos nevados e bebi dois pequenos copos de cer¬veja, entremeados de água pura. Não foi a comida e não foi a bebida. Existe algo que ainda não sei expli¬car. Mas como sou responsável pelo que acontece nes-ta cidade, preciso mandar abrir um inquérito.
O conselho municipal ratificou a abertura de um inquérito que não produziu qualquer resultado. Por outro lado, todos estavam mais calmos, e a calma ti¬nha trazido o esquecimento. Os jornais da cidade evi¬tavam mencionar o incidente, e a crítica da represen¬tação, publicada pelo Memorial de Quinquendone, não fez qualquer alusão à estranha excitação de todo um teatro.
Entretanto, mesmo sob a habitual fleuma, os ha¬bitantes da cidade começavam a dar sinais de mudan¬ças de caráter e de temperamento. Poder-se-ia afirmar nas palavras do médico Custos, que os habitantes da cidade estavam começando a "ter nervos"!
Precisamos, porém, dar algumas explicações. Esta mudança incontestável e incontestada só se manifes¬tava em certas condições. Quando os quinquendonienses caminhavam pelas ruas da cidade ou se mantinham ao ar livre, continuavam a ter as mesmas atitu¬des frias e lerdas de antigamente. Sua vida particular também prosseguia silenciosa, inerte, vegetativa como sempre. Ninguém brigava ou discutia nada acelerava as batidas de seus corações.
Entretanto, por algum motivo inexplicável, eles se transformavam de maneira palpável quando estavam todos juntos.
Por exemplo, quando havia uma reunião num pré¬dio público, na Bolsa, na prefeitura, no anfiteatro da Academia, nas reuniões do conselho municipal ou de cientistas: nestas ocasiões os presentes eram logo to¬mados por uma estranha excitação. Depois de uma hora começavam a trocar comentários azedos. Depois de duas horas as discussões se transformavam em bri¬gas. Os ânimos se alteravam e começavam as injúrias.
Uma única pessoa tinha se apercebido deste por¬menor, sem dúvida esquisito, e era exatamente o co¬missário Passauf, o funcionário cujo cargo o conselho municipal pensava em suprimir - há trinta anos. O comissário Passauf reparou que ninguém ficava excita¬do nas residências, mas que todos ficavam agressivos quando se reuniam num prédio público, e estava a se perguntar, bastante angustiado, o que aconteceria se a misteriosa doença tomasse também conta das ruas. Neste caso, a calma não voltaria mais, ninguém se es¬queceria dos insultos, e a cidade ficaria submersa nu¬ma agitação permanente que, sem dúvida, redundaria numa briga constante entre todos os quinquendonienses.
— O que aconteceria neste caso? — se perguntava o comissário Passauf, assustado. - Neste caso meu cargo não seria mais uma sinecura e o conselho deveria dobrar o meu ordenado... a não ser que eu me visse obrigado a prender a mim mesmo... por desacato e por infringir a ordem pública.
Não demorou, e as preocupações do comissário co¬meçaram a se transformar em realidade. O mal extra¬vasou da Bolsa, da igreja, da prefeitura, da Academia e do mercado e invadiu as residências. Tudo isto acon¬teceu apenas quinze dias depois da malfadada repre¬sentação de Os Huguenotas.
Os primeiros sintomas da epidemia se manifesta¬ram na residência do banqueiro Collaert.
Este riquíssimo personagem estava oferecendo um baile aos mais destacados cidadãos de Quinquendone. Alguns meses antes, Collaert tinha emitido ações redimíveis por trinta mil francos, que já estavam quase to¬das vendidas, e para comemorar este sucesso financei¬ro, pensou em abrir os salões de sua casa e oferecer uma grande recepção.
Todo mundo sabe como são estas festas flamengas muito puras e tranqüilas, em geral à base de cerveja e refrescos. As conversas giram em torno do tempo, das safras, do estado dos jardins, do cultivo das flores e em especial modo, das tulipas. De vez em quando, uma dança vagarosa e comedida, igual a um minueto. Mais raramente, uma valsa, mas uma valsa alemã, mui¬to solene. Em geral, os bailes da alta sociedade quinquendoniense transcorriam assim.
Estas reuniões muito serenas, em que as moças e os rapazes encontravam uma distração honesta e mode¬rada, nunca tinham provocado qualquer desagradabilidade. Por que foi, então, que naquele baile na casa do banqueiro Collaert, os refrescos de frutas pareceram se transformar em vinhos generosos, em champanha frisante, em ponches incendiários? Por que, no meio da festa, os convidados começaram a ser tomados por uma estranha ebriedade? Por que os músicos da or¬questra aceleraram os tempos?
O comissário Passauf, presente à festa, percebia que algo estava para acontecer, mas não tinha meios para evitá-lo. Não conseguia sequer fugir, sentia uma estranha bebedeira. Todas as suas faculdades fisiológi¬cas e passionais estavam aumentando. Foi visto, em várias ocasiões, chegar até o buffet e comer doces, desbragadamente, como quem estivesse saindo de um longo e penoso regime.
A animação do baile estava aumentando a olhos vistos. Um murmúrio demorado, uma espécie de ron¬co, saía de todos os peitos. Todos dançavam, dança¬vam de verdade. Os pés se agitavam freneticamente. Os rostos estavam se avermelhando. Os olhos brilha¬vam como carbúnculos. A agitação geral estava che¬gando ao auge.
Quando a orquestra começou a tocar a valsa do Franco Atirador, aquela valsa deixou de ser uma valsa e virou uma giração frenética, um turbilhão insensato. A seguir, um galope desenfreado e infernal, durante uma hora inteira, sem que qualquer um pudesse parar ou sair, e que levou a todos a passar e repassar vertigi¬nosamente pelas salas e pelos jardins, subindo pelas escadas até o sótão e descendo até o porão: eram as moças, os rapazes, os pais, personagens de todas as idades e de todos os tipos, desde o banqueiro e a se¬nhora Collaert, os conselheiros, os magistrados, até o burgomestre e a senhora Van Tricasse e até o próprio comissário Passauf, que a seguir nunca mais conseguiu se lembrar quem era sua companheira de danças da¬quela noite.

Capítulo 6

Apenas Algumas palavras entre o doutor e seu técnico Ygene

- Então, Ygene?
- Mestre, está tudo terminado. Colocamos o último cano.
- Até que enfim. Agora poderemos operar em vasta escala, e atingiremos até as massas!



Capítulo 7

A EPIDEMIA INVADE A CIDADE TODA E PRODUZ SEUS EFEITOS

Durante os meses seguintes, o mal em vez de desa¬parecer, começou a se espalhar. Transbordou das resi¬dências para as ruas. Ninguém conseguia mais reco¬nhecer a cidade de Quinquendone.
Todos puderam observar fenômenos ainda mais es¬tranhos dos que tinham acontecido com a população, não só entre os animais, mas até entre as plantas.
Em geral, as epidemias são específicas. As que ata¬cam os homens, poupam os animais, as que atacam os animais, poupam as plantas. Os carneiros não se res¬sentem das doenças das batatas. Em Quinquendone entretanto, todas as leis da natureza pareciam estar subvertidas, O caráter, o temperamento e o raciocínio dos habitantes de Quinquendone pareciam modifica¬dos, mas não era apenas isto: os animais domésticos, cachorros, gatos, bois, cavalos, burros e cabritos, to¬dos eles eram vítimas daquela epidemia, como se seu próprio meio ambiente estivesse passando por uma mudança. As próprias plantas estavam se "emancipan¬do", se podemos usar esta expressão.
De fato, vários fenômenos realmente curiosos po¬deriam ser constatados nos jardins, nos pomares, nas hortas e nas vinhas. As plantas trepadeiras trepavam mais alto. As plantas copadas tinham copas mais fe¬chadas. Os arbustos cresciam até ter tamanho de ár¬vores. As sementinhas, logo que eram enterradas, co¬meçavam a germinar, e cresciam a olhos vistos. Os as¬pargos chegavam a cinqüenta centímetros de altura. As alcachofras tinham o tamanho de melões, os me¬lões pareciam morangas e as morangas chegavam a ter tamanho de abóboras. Quanto às abóboras, elas al¬cançavam o tamanho do maior sino da igreja, que ti¬nha três metros de diâmetro. As couves pareciam es¬pinheiros e os cogumelos ficavam do tamanho de guarda-chuvas.
As frutas não demoraram a seguir o exemplo das verduras. Um morango dava para duas pessoas e uma pêra para quatro.
As flores não escaparam e violetas enormes en¬chiam o ar de um perfume penetrante, rosas exagera¬das resplandeciam com cores mais vivas, os gerânios, as margaridas, as dálias, as camélias, os rododentros invadiam as aléias e, crescendo, se sufocavam uns aos outros. As maiores emoções foram provocadas pelas tulipas, estas liliáceas tão queridas de todos os Fla¬mengos: ficaram monstruosas, gigantescas e seus cáli¬ces serviam de ninho a famílias inteiras de pássaros.
Infelizmente, todas aquelas plantas, frutas e flores que cresciam tão desmesurada mente, também mor¬riam logo. O ar que absorviam parecia queimar tudo, e logo apareciam murchos.
A mesma coisa acontecia com os animais domésti¬cos. Gatos e cachorros começaram a mostrar unhas e dentes. Alguns tiveram que ser eliminados. Pela pri¬meira vez um cavalo não obedeceu ao freio e desem-bestou pelas ruas de Quinquendone. Da mesma for¬ma, um boi chifrou uma vaca e um carneiro atacou o açougueiro que pretendia sacrificá-lo, para defender suas costelas.
Os animais pareciam loucos, mas as pessoas tam¬bém eram esquisitas. Ninguém escapou. A doença atacava a todas as idades.
Os bebês eram insuportáveis, e pela primeira vez o juiz Honoré Syntax teve que dar palmadas em seus filhos.
Na escola havia motins constantes e os dicionários voavam como bolas nas salas de aulas. Ninguém con¬seguia manter a disciplina entre os alunos: aliás, até os professores se entregavam a uma esquisita euforia.
Mais um sintoma: os quinquendonienses, até então tão comedidos, se entregavam a verdadeiras orgias de comidas e bebidas. O consumo de gêneros alimentí¬cios da cidade triplicou. Em vez de duas refeições, to¬dos consumiam seis ou sete. O conselheiro Niklausse parecia incapaz de acalmar sua fome. O burgomestre Van Tricasse parecia incapaz de satisfazer sua sede. Vi¬via meio embriagado.
O médico Dominique Custos começou a tratar so¬bretudo doenças do aparelho digestivo.
Foi necessário aumentar os efetivos da polícia para conter os que perturbavam a ordem pública.
Um casal noivou e casou em menos de dois meses - um fato inacreditável e nunca visto antes! Pois é: o filho do professor Rupp se casou com a linda Augustina de Rovere, e as núpcias foram celebradas apenas cinqüenta e sete dias depois do pedido de casamento.
Foram também marcados outros casamentos que, nos tempos de antigamente, teriam ficado ao estado de noivado durante longos anos. O burgomestre não conseguia mais entender nada, e percebia que sua gra¬ciosa filha Suzel não lhe obedecia mais.
Finalmente aconteceu o pior fato de todos: um duelo! Pois é, um duelo a pistola, a setenta e cinco passos e tiro livre! E quem eram os duelantes? Os leitores ficarão estupefatos ao sabê-lo!
Eram Frantz Niklausse e o filho do banqueiro, o jovem Simon Collaert.
Qual era o motivo do duelo? Era a filha do burgo¬mestre, a doce Suzel. Simon estava loucamente apai¬xonado e não queria ceder frente às pretensões de um rival audacioso!

Capitulo 8

OS QUINQUENDONIENSES TOMAM UMA RESOLUÇÃO HERÓICA

O burgomestre, o respeitável Van Tricasse - que sa¬bemos era tão manso, apagado e incapaz de tomar uma qualquer decisão - simplesmente não se acalma¬va mais. Sua casa ribombava de gritos e berros. Baixa¬va vinte decretos por dia, admoestava seus funcioná¬rios, chamava-lhes a atenção e estava pronto a execu¬tar ele próprio tudo o que fosse preciso dentro do aparato administrativo.
Que mudança radical! Onde estava a calma e tranqüilidade da casa do burgomestre, daquela típica casa flamenga? As cenas se sucediam sem intervalo. A se¬nhora Van Tricasse agora era azeda, lamurienta e gulosa. Seu marido conseguia gritar mais alto do que ela, mas não conseguia que ela se calasse. O mal humor da senhora a levava a agredir tudo e todos. Nada servia. A organização doméstica ficou prejudicada, nada era feito no horário certo. Ela acusava Lotché e até Tatanémance, sua cunhada, que também andava azeda e respondia no mesmo tom.
- Afinal, o que está acontecendo conosco? - gri¬tava o burgomestre, desesperado. - Que fogo é este que está nos devorando?
A má disposição de todos produzia também efeitos curiosos que vale a pena assinalar. Talentos, que em outras circunstâncias ficariam ignorados, se revelaram. Surgiram aptidões. Artistas que até aquela época eram apenas medíocres conseguiram a glória. As acirradas discussões produziram oradores capazes de inflamar uma audiência que, aliás, estava sempre disposta a se inflamar. Todos os jornais, escritos com raiva, traziam à baila as mais graves questões sociais.
Mas por quê? A que propósito? A propósito de tu¬do e de nada; por causa da torre de Audenarde que ameaçava ruir, que uns queriam demolir e outros que¬riam escorar; a propósito dos decretos baixados pelo conselho municipal que alguns queriam opor; a pro¬pósito da limpeza dos córregos e dos esgotos, etcétera;etcétera.
E as brigas não se limitavam aos assuntos internos da cidade.
Poucas pessoas sabem que Quinquendone é vizinha de outra cidade dos Flandres, a pequena Virgamen. Os territórios dos dois municípios têm uma divisa em comum.
Em 1185, um pouco antes que o conde Baldovino partisse para a cruzada, uma vaca de Virgamen - no¬te-se que não se tratava de uma vaca de propriedade particular, mas de uma vaca comunal, que pertencia à cidade - foi pastar no território de Quinquendone. A pobre vaquinha realmente só chegou a beliscar a gra¬ma alheia, mas mesmo assim o abuso, aliás, o crime, foi cometido e foi redigida uma ata, porque naquela época os magistrados estavam começando a aprender a escrever.
— Vamos nos vingar no momento oportuno - dis¬se Natalis Van Tricasse, o trigésimo segundo predeces¬sor do burgomestre atual - e os virgamenenses não perderão por esperar.
Os virgamenenses ficaram alertas. Esperaram, pen¬sando, com uma certa lógica, que as lembranças da in¬júria se apagaria com o tempo. Realmente, durante muitos séculos, as duas cidades viveram em paz. Mas ninguém podia prever aquela estranha epide¬mia que mudava completamente o caráter, e que des¬pertou no coração das quinquendonienses a sede de vingança.
Aconteceu no clube da rua Monstrelet. O advoga¬do Schut, espírito ardente, lembrou à audiência aten¬ta a questão em suspenso, valendo-se de expressões e metáforas muito usadas em circunstâncias parecidas. Falou no crime, falou nas ofensas recebidas e demons¬trou que o insulto ainda vivia, que a ferida ainda san¬grava. Mencionou que os habitantes de Virgamen sacudiam a cabeça com ironia quando mencionavam Quinquendone e suplicou a seus patrícios para não mais tolerar a injúria, para vingar-se e ir à desforra terminou fazendo um apelo a todas "as forças vivas" da nação.
Ninguém conseguiria imaginar o entusiasmo provo¬cado por esta alocução. Todos os presentes leVanta¬ram com os braços erguidos, soltando urros e recla¬mando a guerra em altos brados. O advogado Schut nunca pronunciara uma oração com tamanho sucesso, e precisamos nos lembrar que ele era um homem mui¬to bonito.
O burgomestre, o conselheiro e as outras autorida¬des presentes não poderiam ter refreado o impulso popular. Por outro lado, não sentiam vontade de fazê-lo e gritavam quanto os outros:
- Vamos até a divisa! À divisa!
A divisa se encontrava a apenas três quilômetros dos muros de Quinquendone, e os virgamenenses real¬mente estavam contendo um grave perigo: poderiam ser invadidos antes de saber o que estava acontecen¬do.
Enquanto o honrado farmacêutico Josse Liefrink, que estava conservando todas as suas faculdades ape¬sar da gravidade das circunstâncias, interferiu expli¬cando que eles não possuíam fuzis, canhões e gene¬rais.
Responderam-lhe que os generais, os canhões e os fuzis poderiam ser improvisados e que a consciência dos próprios direitos e o amor à pátria bastavam para conferir invencibilidade ao povo.
A este ponto o burgomestre tomou a palavra e num discurso de improviso, realmente sublime, verbe¬rou as pessoas que disfarçam a covardia sob o véu da prudência.
O salão explodiu de palmas e gritos.
Todos reclamavam uma votação.
A votação foi feita por aclamação e os gritos redo¬braram :
- À Virgamen! À Virgamen!
O burgomestre em seguida se preocupou em mobi¬lizar as tropas e prometeu aos seus futuros generais que aquele que voltasse vencedor, receberia a honra do triunfo, como acontecia no tempo dos romanos.
O farmacêutico Liefrink, porém, era um homem muito teimoso e insistiu para fazer mais um comentá¬rio. Observou que em Roma o triunfo só era concedi¬do aos generais quando estes tinham chacinado pelo menos cinco mil inimigos.
— Muito bem, muito bem! — gritou a assistência em delírio.
... mas a população do município de Virgamen é de apenas três mil, quinhentas e sessenta e cinco pes¬soas, e por isto seria difícil que alguém conseguisse a honra do triunfo, a não ser que matasse repetidamen¬te a mesma pessoa...
Não deixaram que terminasse de falar, apesar de sua lógica irrefutável, e o obrigaram a se afastar da reunião.
— Cidadãos! - gritou Pulmacher, dono de uma mercearia. - Cidadãos, não importa o que pensa aquele farmacêutico covarde: garanto que vou matar cinco mil virgamenenses, se vocês quiserem aceitar os meus préstimos.
— Cinco mil e quinhentos! — gritou um patriota mais afobado.
- Seis mil e seiscentos! - relançou Pulmacher.
- Sete mil! - berrou o confeiteiro da rua Hemling que se chamava Jean Orbideck e que estava ganhando uma fortuna produzindo chantily.
- Vendido! - gritou o burgomestre ao ver que ninguém aumentava o lanço.
Foi assim que o confeiteiro Jean Orbideck se tornou general em chefe das tropas de Quinquendone.

Capítulo 9

O TÉCNICO YGENE LANÇA UM AVISO CHEIO DE BOM SENSO, MAS É DESMENTIDO PELO DOUTOR OX

- Vejamos, mestre - falou Ygene na manhã se¬guinte, enquanto despejava ácido sulfúrico em suas enormes baterias - o senhor não acha que as coisas já foram longe demais, e que não é caso de excitar ainda mais aquelas pobres criaturas?
- Não, de jeito nenhum - gritou o doutor Ox. - pretendo ir até as últimas conseqüências!
- Como o senhor quiser. Entretanto, tenho a impressão que a experiência já pode ser considerada satisfatória e já é tempo de...
- De quê?
- De fechar a torneira.
Ora esta! - berrou o doutor Ox. - Trate de não fazer asneiras, porque sou capaz de esganá-lo!

Capítulo 10

ONDE FICA COMPROVADO MAIS UMA VEZ QUE DE UM LUGAR ELEVADO, PODEM SE DOMINAR TODAS AS MESQUINHARIAS HUMANAS

- O que foi que o senhor disse? - perguntou o burgomestre Van Tricasse.
- Eu disse que esta guerra é necessária respondeu o conselheiro com voz firme - e que chegou a hora de vingar a injúria.
Pois eu estou dizendo - declarou o burgomestre em tom azedo, - e pretendo repetir mais uma vez, que se o povo de Quinquendone não aproveitar desta ocasião para impor seus direitos, ele será indigno de seu nome.
- E eu repito que precisamos reunir já nossas forças e levá-las adiante.
- É mesmo, senhor? - retrucou Van Tricasse. – E o senhor ousa me falar neste tom?
- Isto mesmo, senhor burgomestre, e terá que ouvir a verdade, mesmo se doer!
- Estou lhe dizendo que as forças quinquendonienses começarão a marchar antes que se passem dois dias!
- E eu repito que não passarão quarenta e oito horas antes que marchemos contra o inimigo!
Basta este pequeno exemplo para mostrar que am¬bos estavam afirmando a mesma coisa, mas estavam a tal ponto excitados que só queriam brigar, e não pres¬tavam a menor atenção às palavras do outro. Pela apa¬rência e pelo tom de ambos, era evidente que estavam prontos a passar aos fatos.
O carrilhão de um relógio interrompeu aquela tro¬ca de asneiras.
- Pronto, chegou a hora! - exclamou o burgomestre.
- Que hora? - perguntou o conselheiro.
- A hora de ir até a torre do campanário.
- Certo. Irei, quer o senhor queira ou não queira.
- Eu também.
- Então, vamos.
- Vamos.
Estas últimas palavras poderiam dar a entender que ambos estivessem a ponto de se reconciliar, mas não era assim. Estava decidido que o burgomestre e o con¬selheiro iriam até a prefeitura e que em seguida, sendo ambos as mais altas autoridades de cidade, subiriam até o campanário para examinar os campos ao redor da cidade. Assim poderiam tomar todas as disposições estratégicas para assegurar o progresso das tropas.
Apesar de ambos estarem de acordo não pararam de brigar durante o caminho.
Quando chegaram à estreita escadinha que levava ao topo da torre, houve uma verdadeira explosão. Quem passaria primeiro? Infelizmente, precisamos confessar que houve um empurra-empurra, e que o conselheiro Niklausse esqueceu o respeito devido ao seu superior e por meio de uma violenta cotovelada, conseguiu afastá-lo o suficiente para subir primeiro.
Subiram ambos, um atrás do outro, se insultando. Parecia até que, chegando ao topo, haveria alguma tragédia.
Entretanto, os dois adversários logo perderam o fô¬lego e os últimos lances da escada foram superados em silêncio e quase sem fôlego.
Estavam calados, e a coisa mais extraordinária ain¬da, parecia que toda a agitação estava se evaporando enquanto subiam. A paz estava voltando aos seus es¬píritos. Os cérebros não estavam mais fervendo.
Quando ambos chegaram a mais de oitenta metros de altura, estavam muito calmos e se sentaram para descansar. Então se entreolharam sem nenhuma cólera.
— É muito alto - observou o burgomestre, passando o lenço sobre a testa.
— Muito alto mesmo — respondeu o conselheiro.
- O senhor sabia que esta torre é seis metros mais alta
que a torre de São Miguel, em Hamburgo?
- Eu sabia.
Depois de alguns minutos voltaram a subir. O burgomestre agora estava na frente, sem que o conselhei¬ro tivesse esboçado qualquer protesto. Quando galga¬ram o trecentésimo quarto degrau, Van Tricasse estava realmente cansado e o conselheiro começou a empur¬rá-lo amistosamente por detrás. O burgomestre não protestou e quando chegaram à plataforma do topo, disse:
- Muito obrigado, Niklausse.
Era um dia lindo de maio. O sol tinha dispersado todas as nebulosidades, deixando a atmosfera pura e cristalina. Podia-se ver até objetos muito pequenos a uma grande distância. A poucos quilômetros surgiam os muros brancos de Virgamen, encabeçados por tetos vermelhos, com pequenos campanários pontiagudos e lustrosos por aqui e por acolá. Ainda sem fôlego, os dois homens ficaram a admirar a vista, e depois de um breve silêncio, o burgomestre falou:
- Que beleza!
- Realmente admirável - concordou o conselhei¬ro. - O senhor não acha, prezado Van Tricasse, que a humanidade deveria sempre se manter a esta altura, e não se arrastar sobre a casca do nosso planeta?
- Concordo com você, meu bom Niklausse. Aqui é mais fácil perceber o sentimento inspirado pela natureza!
- Vamos dar a volta na plataforma? – perguntou o conselheiro.
- Está bem.
Os dois amigos, de braços dados, como antigamen¬te, observaram a vista em todas as direções, falando pausadamente, como costumavam fazer em outros tempos.
Ah, a natureza, a natureza, Niklausse! A mão do homem jamais poderia lutar contra ela!
Tudo isto é maravilhoso, meu amigo - dizia o conselheiro. Olhe para aqueles animais pastando, as vacas, os cordeiros...
E os camponeses indo ao trabalho dos campos. Os dois amigos estavam extasiados. O burgomestre perguntou de repente, com muita calma:
- Meu amigo Niklausse, por que subimos até o topo da torre?
- Subimos para respirar este ar que ainda não foi viciado pelas fraquezas humanas.
- Muito bem. Que tal descermos? Vamos descer.
Ambas as autoridades lançaram um último olhar ao panorama realmente esplêndido. A seguir o burgo¬mestre começou a descer vagarosamente. O conselhei¬ro o seguiu a alguns degraus de distância. Chegaram ao patamar onde tinham descansado ao subir. Suas fa¬ces estavam começando a se avermelhar. Pararam um pouco e voltaram a descer.
Um minuto mais tarde Van Tricasse pediu a Niklausse para ir mais devagar, porque estava pisando em seus calcanhares e isto o deixava nervoso.
O conselheiro respondeu que não estava com von¬tade de esperar antes de dar um passo, só porque o burgomestre era lerdo.
Van Tricasse soltou um palavrão.
O burgomestre desceu mais vinte degraus, amea¬çando que as coisas não iam ficar assim.
Niklausse então declarou que ia tomar a dianteira, e como a escada era muito estreita, as duas autorida¬des colidiram e se encontraram na mais profunda escuridão.
Houve mais uma troca de palavrões.
- Vamos ver, sua besta! - berrou o burgomestre.
- Vamos ver seu papel nesta guerra e com que patente vai marchar nas fileiras!
- Será sempre uma patente superior à sua! Seu imbecil! - respondeu o conselheiro.
O guarda da torre, ao ouvir todo aquele estardalha¬ço, abriu a portinha que dava para a rua, no momento em que os dois adversários contundidos e com os olhos esbugalhados estavam começando a se arrancar reciprocamente os cabelos, que por muita sorte eram perucas.
- Você terá que responder por isto! - se esganiçou o burgomestre, agitando o punho debaixo do nariz do conselheiro.
- Na hora que quiser! - cacarejou o conselheiro, erguendo o pé direito com ar ameaçador.
O guarda, que também se sentia exasperado - sem realmente saber os motivos — achou que aquela cena era perfeitamente natural. Apressou-se então a espa¬lhar pelas redondezas o boato que o burgomestre Van Tricasse e o conselheiro Niklausse iam se enfrentar num duelo.

Capítulo 11

ONDE AS COISAS ESTÃO INDO TÃO LONGE, QUE OS CIDADÃOS DE QUINQUENDONE, OS LEITORES E O PRÓPRIO AUTOR RECLAMAM UMA SOLUÇÃO IMEDIATA

Quando o doutor Ox ouviu o que estava acontecendo, não conseguiu controlar a alegria. Não queria dar ouvidos às recomendações de seu técnico, que re¬ceava que as coisas pudessem chegar aos extremos. Aliás, ambos compartilhavam da exaltação geral. Es¬tavam excitados como o resto da população e chega¬ram até mesmo a brigar, como já tinham feito o burgomestre e o conselheiro.
Aliás, é bom esclarecer que um assunto prevalecia sobre todos os outros, e fizera adiar os duelos pro¬gramados: era a questão virgamanesa. Ninguém tinha o direito de derramar seu sangue de forma inútil, quando ele pertencia, até a última gota, à pátria amea¬çada.
A situação era deveras grave, e voltar atrás era im¬possível.
O burgomestre Van Tricasse, apesar de sua eferves¬cência guerreira, acreditava não poder atacar o inimi¬go sem avisa-lo. Por intermédio do guarda campes¬tre, senhor Hottering, exigiu que os virgameneses pa¬gassem uma indenização por causa da invasão territo¬rial acontecida em 1195.
As autoridades de Virgamen, num primeiro tempo, não entenderam a gravidade da situação e mandaram que o guarda campestre se retirasse.
Van Tricasse então mandou um ajudante de campo do general confeiteiro, o cidadão Hildevert Shuman, que por sua vez era fabricante de açúcar caramelado. Homem muito firme e enérgico, que levou à Virga¬men a minuta do processo verbal original de 1195, re¬digido pelo burgomestre Natalis Van Tricasse.
As autoridades de Virgamen caíram na gargalhada e trataram o ajudante de campo como já tinham trata¬do o guarda campestre.
Então o burgomestre reuniu as pessoas mais impor¬tantes da cidade. Foi redigida uma carta muito enérgi¬ca, em forma de ultimatum: o casus belli foi exposto da maneira mais clara, e a cidade culpada recebeu um prazo de vinte e quatro horas para reparar o ultraje perpetrado em prejuízo de Quinquendone.
A carta foi enviada e voltou dentro de poucas ho¬ras, rasgada em mil pedacinhos e cada pedacinho foi considerado um novo insulto. Os virgameneses sabiam há muito tempo que os quinquendonienses eram ino-fensivos e faziam pilhérias, rindo dos cidadãos, de suas reclamações, de seu casus belli e de seu ultima¬to.
Agora já não restava mais nada a fazer, a não ser confiar nas armas, invocar o deus da guerra e, imitan¬do o sistema prussiano, atacar os virgameneses antes que ultimassem seus preparativos.
O conselho municipal decidiu neste sentido duran¬te uma sessão solene, em meio a gritos, ameaças e ges¬tos violentos. Parecia uma assembléia de loucos, uma reunião de possuídos.
Logo que a declaração de guerra se tornou pública, o general Jean Orbideck reuniu as tropas que consta¬vam de dois mil e trezentos e noventa e três comba¬tentes, para uma população de dois mil, trezentos e noventa e três almas. As mulheres, as crianças e os ve¬lhinhos tinham se ajuntado aos homens. Qualquer objeto cortante ou contundente tinha se transformado em arma. Foram requisitados todos os fuzis da cida¬de: eram cinco ao todo, dois deles sem o gatilho, e fo¬ram entregues à Vanguarda. A artilharia se resumia numa velha colubrina do castelo, arrebatada em 1339, durante o ataque de Quesnoy, e isto significa que era uma das primeiras bocas de fogo mencionadas na his¬tória, e que ninguém a usara durante os últimos cinco séculos. Aliás, por muita sorte, não existiam projéteis que pudessem ser usados para a colubrina: entretanto, assim como ela se apresentava, ainda podia assustar o inimigo. As armas brancas tinham sido requisitadas no museu de antiguidades: machados de pedra, clavas, malhos, alabardas, chuços, espadas e espadões, e ainda toda espécie de arma que pode ser encontrada em co¬pas e cozinhas. A coragem, o direito, o ódio para os estrangeiros, o desejo de vingança iam substituir ar¬mas mais perfeitas - pelo menos assim todos espera¬vam - como metralhadoras modernas e canhões que pudessem ser carregados pela culatra.
As forças foram passadas em revista. Nenhum cida¬dão faltou. O general Orbideck, balouçante sobre o cavalo, que era um bicho muito malvado, caiu três ve¬zes em frente às tropas, mas conseguiu se levantar sem ferimentos e este fato foi considerado de bom pressá¬gio. O burgomestre, o conselheiro, o comissário cívi¬co, o juiz, o professor, o banqueiro, o reitor, em suma todas as autoridades marchavam na primeira fila. As mães, irmãs e namoradas não verteram sequer uma lá¬grima. Estavam arrastando seus maridos, irmãos e namorados para a luta, e os seguiam, formando a reta¬guarda, comandadas pela corajosa senhora Van Tricasse.
A corneta de Jean Mistrol tocou: o exército rom¬peu as fileiras e lançando gritos ferozes, se precipitou em direção à porta de Audinarde.
No momento em que a cabeça da coluna estava a ponto de transpor os muros da cidade, um homem apareceu aos gritos:
- Parem, parem todos! São todos loucos! — grita¬va. — Deixem que feche a torneira, suspendam a ação! Vocês não são loucos! Vocês são bons burgueses pací¬ficos e tranqüilos! Este desvario foi provocado pelo meu mestre, o doutor Ox. Com o pretexto de dar-lhes uma iluminação a gás, ele saturou...
O técnico parecia completamente enlouquecido, mas não conseguiu terminar. Quando o segredo do doutor Ox já estava para ser revelado, o próprio dou¬tor Ox apareceu e dominado por uma fúria indescrití¬vel, se lançou sobre o pobre Ygene e fechou sua boca a socos.
Foi uma verdadeira batalha. O burgomestre, o con¬selheiro e as autoridades que tinham parado ao ver Ygene, completamente exasperados, se jogaram sobre os dois estrangeiros, sem querer saber de nada. O dou¬tor Ox e seu técnico, chutados e surrados, deviam ser levados para o xilindró da cidade, quando, de repente...

Capítulo 12

COM UMA SOLUÇÃO EXPLOSIVA

... todos ouviram uma terrível explosão. A atmos¬fera que envolvia Quinquendone ficou toda afoguea¬da. Uma chama extremamente intensa e brilhante su¬biu pelo ar como um meteorito. Fosse de noite, aque¬la chama poderia ser vista a uma distância de, pelo menos, dez léguas.
Todo o exército de Quinquendone foi jogado ao chão... Felizmente ninguém se machucou, não houve vítimas: só alguns arranhões e nada mais. O confeitei¬ro que, por acaso, hão tinha caído do cavalo, ficou com o penacho chamuscado ainda mais.
O que tinha acontecido?
Logo todos ficaram sabendo. A usina de gás tinha ido para os ares. Provavelmente foi por causa de algu¬ma imprudência acontecida quando o doutor Ox e seu técnico estavam ausentes. Ninguém sabe como a coisa aconteceu, mas houve algum vazamento do tan¬que de oxigênio para o tanque de hidrogênio. A mis¬tura destes dois gases produziu uma base detonante, que explodiu por causa de uma faísca qualquer.
Isto mudou a situação - mas quando as tropas se levantaram, o doutor Ox e seu técnico já tinham desa¬parecido.
Logo depois da explosão, Quinquendone voltou a ser a cidade pacífica, fleumática e flamenga de sem¬pre.
Após a deflagração, que por sinal não assustou nin¬guém, todos, sem saber como e nem por que, volta¬ram para suas casas: o burgomestre de braço dado com o conselheiro, o advogado Schut de braço dado com o médico Custos, Frantz Niklausse de braço da¬do Com seu rival, Simon Collaert: todos estavam tranqüilos, não faziam qualquer barulho e nem mesmo se lembravam do que tinha acontecido:já não pensavam em Virgamen e na vingança. O general voltou para a sua confeitaria e seu ajudante de campo ao açúcar caramelado.
Tudo voltou à calma, todos voltaram à vida costu¬meira, homens, animais e plantas, e até a torre de Audenarde... que por um milagre tinha se endireitado com a explosão. As explosões, às vezes, têm resulta¬dos estarrecedores.
A seguir, nunca mais se ouviu qualquer altercação na cidade de Quínquendone. Ninguém mais falou em política, aboliram o clube, não houve mais processos e nem guardas. O cargo do comissário Passauf voltou a ser uma sinecura, e se ele não o perdeu, isto deve-se unicamente ao fato que o burgomestre e o conselhei¬ro não se decidiram a tomar qualquer decisão a este respeito.
O rival de Frantz desistiu generosamente de Suzel, e o casal apressou o casamento que foi celebrado cin¬co ou seis anos mais tarde.
Mas qual era o segredo do doutor Ox? O doutor Ox tinha tentado uma experiência fantástica, nada mais.
Depois de assentar os encanamentos, tinha satura¬do o ar de oxigênio puro, sem qualquer átomo de hidrogênio, mandando este gás para os edifícios públi¬cos e depois para as residências, e finalmente até para as ruas.
Este gás inodoro e sem gosto pode provocar, quan¬do é aspirado em altas concentrações, sérios distúr¬bios em todo o organismo. Quem vive num ambiente saturado de oxigênio, fica excitado, superexcitado, sente-se arder.
A vida nestas condições opera uma transformação fisiológica no corpo e no espírito, e as pessoas morrem cedo, como loucos que levam uma vida desorde¬nada.
Foi muita sorte que a usina explodisse, e que assim terminassem as experiências do doutor Ox com os quinquendonienses.
A virtude, a coragem, o talento, o espírito, a imagi¬nação poderiam ser consideradas dependentes do oxigênio?
Era esta a teoria do doutor OX, mas temos o direito de não acreditar nela, e pessoalmente a rejeitamos de maneira integral, apesar de todas as experiências que foram feitas na honrada cidade de Quinquendonde.



domingo, 20 de setembro de 2009

SUGESTÃO DE LEITURA PARA GRUPO DE ESTUDOS



NÃO DEVEMOS ESTUDAR SÓ PARA ARRANJAR UM EMPREGUINHO. DEVEMOS COMEÇAR A ESTUDAR PARA COMPREENDER MELHOR A NÓS MESMOS, NOSSAS VIDAS, PENSAR O TEMPO EM QUE VIVEMOS E, ASSIM, CONTRIBUIR PARA A HUMANIDADE, NEM QUE SEJA APENAS NA TRANSMISSÃO DAS TRADIÇÕES QUE NOS TORNARAM CIVILIZADOS, DA FAMÍLIA BEM CONSTITUIDA E DO CONHECIMENTO REALMENTE RELEVANTE.



Pe. Bernard Joseph Francis Lonergan S. j.

Filósofo e teólogo de tradição tomista e também economista, formado em Buckingham, Quebec. Lonergan era professor do Colégio Loyola, de Montreal, da Universidade de Toronto (Regis College), da Pontifícia Universidade Gregoriana e do Boston College.



Dom Stanley L. Jaki, OSB - Físico e Teologo - Importantíssimo - jeja alguns artigos e consulte bibliografia.

A Thousand Years from Now
http://www.mmisi.org/ma/43_01/jaki.pdf
Science and the Future of Religion
http://www.mmisi.org/ma/33_02/jaki.pdf
The Modernity of the Middle Ages
http://www.mmisi.org/ma/31_3-4/jaki.pdf
The Physics of Impetus and the Impetus of the Koran
http://www.mmisi.org/ma/29_02/jaki.pdf
History as Science and Science in History
http://www.mmisi.org/ir/29_01/jaki.pdf
Science: Revolutionary or Conservative?
http://www.mmisi.org/ir/24_02/jaki.pdf
The Three Faces of Technology
http://www.mmisi.org/ir/23_02/jaki.pdf
Censorship and Science
http://www.mmisi.org/ir/21_02/jaki.pdf
Einstein and the Absolute Beneath the Relative
http://www.mmisi.org/ir/20_03/jaki.pdf






René Girard é o “Darwin das ciências sociais”, e o impacto do pensamento girardiano é crescente e vem sendo objeto de estudos nas mais variadas áreas: da biologia à economia, da antropologia às ciências políticas. Além do mais, as idéias girardianas desafiam teses basilares da cultura contemporânea como os estudos freudianos sobre o desejo, a interpretação dos mitos de Claude Lévi-Strauss e o determinismo econômico de Marx, abrindo um novo campo de especulações.

Ver bibliografia na Editora É realizações
http://www.erealizacoes.com.br/




Uma Breve Teoria do Poder Objetiva, exclusivamente, desventrar as razões que levam vam o homen a desejá-lo e quais limites para sua conquista e exercício. Partindo de reflexões filosóficas, análise histórica, formatações jurídicas, conformações econômicas, vvência política e considerações sociológicas, adentra o mundo dos fatos, da realidade do poder e de seus detentores, procurando demonstrar que o poder se justifica por si mesmo. O servir àqueles que lhe são subordinados, constitui, de rigor e apenas, efeito colateral ou, na maioria dos casos, campo de manipulação demagógica, como o correr dos séculos tem demonstrado. A teoria é breve e centrada, fundamentalmente, na figura daquele que detém o poder, nos motivos que levam a essa ambição e na conseqüencia de seu exercício sobre as massas.
(Ives Gandra da Silva Martins (São Paulo, 12 de fevereiro de 1935) é um advogado tributarista e jurista brasileiro.
Atualmente é o presidente do Centro de Extensão Universitária, professor emérito da Universidade Mackenzie e professor honoris causa do Centro Universitário FIEO.
Membro da Academia Paulista de Letras, do Instituto dos Advogados de São Paulo da Ordem dos Advogados, secção de São Paulo.)






Jesus de Nazaré
Bento XVI começou a escrever o livro em 2003. Após sua eleição, dedicou todo o tempo livre à obra. Trata-se do primeiro livro escrito por Joseph Ratzinger após se tornar Papa. O Pontífice, também teólogo, conduz o leitor à procura pela verdadeira vida de Jesus e trata de sua figura de maneira histórica e teológica. Reconstruindo sua vida a partir do Evangelho, Bento XVI desmonta muitas especulações sobre Jesus, que tiveram um imenso sucesso comercial nas livrarias e cinemas nos últimos anos.




Há 100 mil anos, poucas dezenas de seres humanos saíram da África. Seus descendentes, adaptando-se aos diferentes climas, desenvolveram inúmeras tonalidades de cor da pele.
Um dia, alguns voltaram. Primeiro, como comerciantes, adquiriram cativos escravizados pelos próprios conterrâneos. Depois, como conquistadores, impuseram o poder de suas nações sobre a África, alegando que os primos que ficaram faziam parte de uma raça distinta.
A curiosa ideia pegou. Sobreviveu à proclamação dos direitos humanos e à razão científica, difundindo-se no mundo da política. Pessoas de prestígio de todas as cores (até negros!) fingiram acreditar nela - e começaram a passar-se por líderes raciais. Hoje, a pretexto de fazer o bem, traçam-se fronteiras sociais intransponíveis, delineadas com as tintas de uma memória fabricada.
Este livro conta a história de um engano de 200 anos: o tempo da invenção, desinvenção e reinvenção do mito da raça. O nosso tempo.



RIQUEZA REVOLUCIONARIA - O SIGNIFICADO DA RIQUEZA NO FUTURO
Alvin Toffler Heidi Toffler



Olavo de Carvalho - O Jardim das Aflições. De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil.




Prof. Dr. Frei Antônio Moser - O pecado: do descrédito ao aprofundamento. Vozes, Petrópolis, 1996.



Mario Vieira de Mello - Desenvolvimento e Cultura - O problema do estetismo no Brasil.



Plínio Corrêa de Oliveira - Revolução e Contra Revolução
&


Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana


Eric Voegelin – Ordem e História

Frederic Maitland – Doomsday Book and Beyond

Eduard Meyer - História da Antiguidade

Modris Eksteins – Rites of Spring




Hippolyte Taine – Origens da França Contemporânea



Ernest Kantorowicz - Os Dois Corpos do Rei



Jacob Burckhardt - A cultura do Renascimento na Itália



Leopold von Ranke – História dos Papas



Johan Huizinga – O Outono da Idade Média




Theodore Mommsen – História de Roma


George Grote – A História da Grécia

ENTENDA MELHOR A RELIGIÃO - SEGUNDA PARTE

“...toda a discussão no Brasil gira em torno de palavras imantadas de valores emocionais.” OLAVO DE CARVALHO

"A DIFERENÇA ENTRE O POETA E O LOUCO É QUE O POETA PÕE A CABEÇA NO MUNDO E O LOUCO PÕE O MUNDO NA CABEÇA"