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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A EDUCAÇÃO JESUÍTICA: DA MÍSTICA DOS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS À FORMAÇÃO DE UM INDIVÍDUO AUTÔNOMO


A EDUCAÇÃO JESUÍTICA: DA MÍSTICA DOS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS À FORMAÇÃO DE UM INDIVÍDUO AUTÔNOMO 


Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito de conclusão do Bacharelado em Pedagogia.



RESUMO


POMPEU, Cláudio Antônio Arantes. A Educação Jesuítica: da Mística dos Exercícios Espirituais à Formação de um Indivíduo Autônomo. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura Pedagogia),  Universidade Estadual Paulista – Júlio De Mesquita Filho – UNESP , São Paulo, 2013.

O presente  trabalho pretende ser uma reflexão alternativa sobre a educação baseada na Tradição Espiritual do Cristianismo, de modo particular em uma de suas sínteses, que são os “Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola”.  Apresentamos  os “Exercícios” como base da formação Jesuítica e apontamos alguns aspectos  que possibilitam a formação de um indivíduo autônomo.  
Palavras Chaves: Exercícios Espirituais; Hierofania; Autonomia. 

Introdução

Para conseguir com maior segurança e maior eficácia o seu fim apostólico –esclarecer e dilatar a fé – a Companhia tem de preparar com estudos especiais, mesmo profanos, um bom número de homens que se tornem capazes de exercer certos ministérios, e sobretudo de se entregar ao trabalho científico propriamente dito, sua preciosa e tradicional herança.
Por esse caminho árduo se atingirá, ao menos mediata e lentamente, um bem mais universal: na pessoa do sacerdote culto, a Igreja estará presente nos trabalhos, investigações ansiedades e esperança dos homens do nosso tempo; e, com a luz da divina revelação e duma sólida filosofia, iluminará constantemente, interpretará e levará para Deus a mentalidade moderna.” Regras da Companhia de Jesus e excertos do epítome, p. 79-80, Braga, 1964.)


Aos anos 90, foram os anos de minha formação acadêmica. Estudei Filosofia na Universidade de São Paulo, na Cidade Universitária. Sempre residi na zona leste da cidade, e ir para a USP, sempre foi uma “viagem”.
Entre idas e vindas, entre 1993 e 2000, passei muitas vezes pela Abadia Nossa Senhora da Assunção, mais conhecida como Mosteiro de São Bento, instituição quatro vezes secular em nossa cidade, assim como seu marco seminal, o Pátio do Colégio, local onde minha cidade começou, sob o impulso missionário e heróico dos Jesuítas: Nóbrega, Anchieta e seus companheiros.
Numa dessas idas e vindas, entrei no Mosteiro, onde tive um encontro fortuito com um Irmão Beneditino, de nome Pascoal. Nesse tempo, eu já lecionava, e o Irmão Pascoal, sabendo disso, fez um breve comentário sobre como a perseguição de Pombal aos Jesuítas, e a questão religiosa no Reinado de D. Pedro II, resultaram em um atraso, segundo ele, de pelo menos cem anos na educação brasileira. Contou-me de como  a Arqueabadia da cidade do Rio de Janeiro, foi abandonada a ponto de vacas pastarem em seu claustro, e de como os moços com vocação religiosa, ficaram privados de ingresso aos noviciados.
            Foi um encontra rápido, e depois daquilo, segui o meu caminho.  Algum tempo mais tarde, comecei a licenciatura na Faculdade de Educação da mesma Universidade de São Paulo, e, foi lá que tive contato com a crítica fervorosa contra a Educação no Período Colonial, que desrespeitou a identidade cultural dos índios, impôs contra suas consciências uma nova religião, conduziu-os como gado para a escravidão e o abate.
            A oposição dos dois pontos de vista, o do velho monge beneditino, e aquele do mundo acadêmico, extinguiu a unanimidade de minhas convicções mais íntimas relacionadas à fé que professo, e, em um longo processo, fui, a cada golpe desferido, contra a ação catequética   da Sociedade de Jesus, me inteirando, muito espontânea e lentamente sobre sua história.  Primeiro, a conversão de Santo Inácio de Loyola, depois a figura de Martinho Lutero, a vida de Manuel de Nóbrega, José de Anchieta, e do espetacular São Francisco Xavier, o “Apóstolo do Oriente”.
O menológio da Companhia de Jesus datado de 1859, traz uma relação de feitos memoráveis de mais de quatrocentos de seus membros.  A Igreja elevou à dignidade dos altares seiscentos e dezessete jesuítas, sendo cento e oitenta e nove canonizados e quatrocentos e vinte e oito beatificados.
No campo das ciências, a influência da Companhia não foi menos sentida. Entre 1540 e 1759 manteve em Portugal uma grande rede de ensino com proeminente produção científica, só eclipsada pela propaganda pombalina.
Mais recentemente, podemos notar a importância da atuação dos Jesuítas em várias áreas da ciência, alguns deles reconhecidos como heróis do holocausto judaico, atuantes na defesa dos direitos humanos. Mais recentemente, sobressaem os nomes Pierre Teilhard de Chardin, Karl Rahner, e Bernard Lonergan e Pedro Arrupe, e, no Brasil, Luciano Mendes de Almeida.
O pensamentos desses homens, não tem nada de anacrônico nem atrasado, ao contrário, parecem indicar para um futuro, ainda não vislumbrado no meio acadêmico:

"Deus, a quem sentia tão perto de mim, (…), irresistivelmente me atraiu a si. E o descobri tão perto dos que sofrem, dos que choram, dos que naufragam, nesta vida de exclusão, que se acendeu em mim o ardente desejo de imitá-lo nesta voluntária proximidade dos desamparados do mundo, pessoas que a sociedade despreza, porque nem sequer suspeita que há uma alma vibrando debaixo de tanta dor" (Lamet, Pedro Miguel SJ, "Arrupe, una explosión en la Iglesia", p. 59).

"Aparentemente, a Terra Moderna nasceu de um movimento anti-religioso. O Homem bastando-se a si mesmo. A Razão substituindo-se à Crença. Nossa geração e as duas precedentes quase só ouviram falar de conflito entre Fé e Ciência. A tal ponto que pôde parecer, a certa altura, que esta era decididamente chamada a tomar o lugar daquela. Ora, à medida que a tensão se prolonga, é visivelmente sob uma forma muito diferente de equilíbrio – não eliminação, nem dualidade, mas síntese – que parece haver de se resolver o conflito." (Teilhard de CHARDIN, O Fenômeno Humano)

Observando os dois “lados”, posicionamentos tão contrários, não foi difícil de constatar, que a aparente contradição só pode ser resultado do conflito de modelos de humanismos ainda não totalmente assimilados no âmbito civilizacional atual, mas que já se encontram superados nas altas esferas de reflexão como as de homens como Cardin e Xavier Subiri.
 Assim, talvez não seja mais atual, analisar a atuação dos Jesuítas sob a ótica do Humanismo racionalista, do Humanismo existencialista e do Humanismo Marxista, que marcaram o “mundo moderno” em oposição ao “mundo medieval”, período no qual nasce a obra de Santo Inácio de Loyola, e que teve a missão de não pertencer nem a um nem a outro, estando ao mesmo tempo imersa na dicotomia dos dois.
Mas, ainda assim, não ficou claro para mim qual era aquela essência da formação Jesuítica capaz de imprimir tanto caráter ao mundo moderno, e que, de certa forma, foi capaz de incomodar   tanto à Igreja como ao Mundo,
Minha pesquisa, que surgiu do antagonismo entre a conversa com um monge e as aulas na Faculdade de Educação, me faz questionar, qual é a essência dessa educação, qual sua filosofia implícita, e, se ela existe, verificar historicamente qual o seu resultado.
Talvez, por representarem uma potente renovação espiritual dentro do Cristianismo, o jesuitismo tenha sido atacado pelos protestantes, pelos iluministas, pelos “católicos” de conveniência, e, por outro lado, defendidos por conservadores e ultramontanos, dificultando assim a compreensão do fenômeno espiritual iniciado por Loyola e que perdura até hoje.
Quero procurar nos documentos, uma educação baseada em valores outros que não a do modelo econômico capitalista, que poderia ser a base de uma sociedade comunal, mais justa.

1 -  Para além da modernidade, o resgate da experiência religiosa

            A modernidade foi caracterizada por embates surpreendentes e até apocalípticos entre fé e razão, a começar pela crítica iluminista contra a religião como poder e superstição, até a subida ao poder do regimes ateus totalitários capazes de transformar o sonho da razão em pesadelos que nem mesmo Goya poderia sonhar. Dos avanços científicos do racionalismo e empirismo, a revoluções cada vez mais sangrentas em prol de um “Mundo Melhor”, culminamos intelectualmente em um Existencialismo que condena o Homem a ser livre e ao suicídio.  Atacada por todas as partes, a Cristandade, formada no eurocentrismo cultural que vivenciamos hoje, foi sendo demolida, e como resultado da libertação das forças espirituais que emanam daquelas ruínas, vemos a religiosidade crescer cada vez mais, fragmentada em seitas, próprio do fenômeno sociológico de expansão desordenada da religiosidade livre (LE BON, cap. IV, 2005), que apontam não para o declínio, mas, para a expansão do fenômeno religioso, componente essencial do fator civilizacional.
            Ao desenvolvermos a noção de civilização podemos facilmente tomar esta como sinônimo de cultura, e então, o que entendemos por civilização   nada mais é que a expansão da própria vida humana. Nesse desenvolvimento cultural não contam apenas elementos de ordem racional e material, mas também, os de ordem espiritual (MARITAIN, p.94-95, 1942).
            Até pouco tempo atrás, essa afirmação poderia parecer extremamente religiosa, devido ao ranço positivista antimetafísico que temos em nosso pensamento acadêmico. Agora, começam a ser ventilados entre nós escritos da ciência das religiões, como disciplina autônoma, o que nos permite tratar certos assuntos de maneira mais ampla, sem que para isso, recorramos ao pensamento puramente religioso\mitológico e confessional.
            Mesmo que o fizéssemos em nada ficaríamos a dever com relação   a uma apresentação puramente acadêmica, uma vez que, até Platão, não prescindiu do mito para expor seu sistema Filosófico e, a própria noção da Filosofia deriva também de uma explicação mitológica.
            Segundo o mito, a noção de filosofia é intimamente ligada ao deus Eros. O amor, Eros, foi concebido quando Vênus nasceu e os deuses estavam festejando. No fim da festa, quando os deuses estavam embriagados, Pênia (a pobreza) se pôs a mendigar enquanto Poros (a riqueza) dormia embriagado, aproveitando-se dele, Pênia engravida e tem como filho Eros. Como filho de Poros e Pênia, Eros herda as características de seus país, de um lado é pobre e grosseiro, mas está sempre próximo dos belos, dos bons, é valoroso intrépido e diligente e traiçoeiro é apaixonado pela sabedoria, passa a vida a filosofar, é um charlatão, um sofista, não é nem imortal, nem mortal, mas em um mesmo dia, floresce, vive, se tem abundância de recursos, morre e depois volta a viver de acordo com a natureza de seu pai. Mas aquilo que ele procura e quer sempre escapa de suas mãos, de modo que o Amor nunca é pobre nem rico, se encontra sempre entre o ter e o não ter, entre a sabedoria e a ignorância. Assim, o Amor é um filósofo, pois é pobreza, aspiração, ignorância, mas é também engenho, abundância, possessão, sabedoria.
            Assim a filosofia é amor à sabedoria, enquanto não é possessão, mas desejo de possuir, aspiração, busca, tendência. Não é a sabedoria, mas somente amor “de” ou a busca da sabedoria. Para que exista o desejo da sabedoria, é necessário que antes exista a admiração que é o descobrimento do ser. Portanto para conhecer, é necessário não estar em absoluta ignorância (pois assim, nem sequer desejaria conhecer), mas tão pouco haver conseguido alcançar a plena sabedoria. O amor à sabedoria é o intermediário entre a ignorância e o conhecimento. A filosofia não é a possessão plena do ser - que é o que produz o espanto, origem da filosofia – mas o querer possuí-lo. E somente o ser, o todo, enquanto conhecido, pode saciar esta aspiração ou tendência fundamental.
            Como vemos, o mito nos ajuda a compreender uma realidade mais sublime, porém não inexistente ou projetada. O mesmo acontece com a religião que se exprime nos elementos sagrados. O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais”, mas que em termos de linguagem, sugere tudo o que “ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural.” (ELIADE, p.12, 1992).
            Só o homem é capaz do sagrado, só o homem é capaz da filosofia, ele está no Cosmos mas não criou o Cosmos, e este é algo que o transcende, o homem é um ser mas não criou o ser e este lhe permanece sempre estranho, sempre uma possibilidade. Nesse sentido, a filosofia, e com ela a inteligência do homem, é uma ponte entre o finito e o infinito.
            Longe da crítica Iluminista da Religião como dominação e superstição, distante da neurótica e neorotizante visão de um deus pai exaltado freudiana, explicitada em “Totem e Tabu” e “O Futuro de uma Ilusão”, longe de um Deus criado à imagem e semelhança do homem, que mais simplifica o fenômeno religioso do que o explica, preferimos nos aproximar de nosso tema utilizando o conceito de hierofania cunhada por Eliade.  Para o respeitável professor de Bucareste,
“O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo “natural”, “profano”. (ELIADE, p. 13,1992)
            A visão que faz do fenômeno religioso uma sublimação, uma criação, uma idealização ou mesmo uma projeção ligada a concepções historicamente comprometidas com o iluminismo e a luta dos humanismos desses últimos séculos, pode, com maior possibilidade de  interpretação, ser  superada pelos estudos de grandes pensadores como René Girard e Eric Voegelin.  O comentário desse último a respeito   do povo de Israel e a Revelação são particularmente impressionantes:

“A sensibilidade espiritual do homem que abriu sua alma para a palavra de Yahweh, a confiança e a fortaleza necessárias para fazer desta palavra a ordem da existência em oposição ao mundo e a imaginação criativa usada para a transformação do símbolo de servidão civilizacional no símbolo de libertação divina – essa combinação é um dos grandes e raros eventos na história da humanidade. Esse evento leva o nome de Abraão.  (Voegelin.  p. 253, 2009).
             Se no passado a religião poderia ser fator de desunião, pois era o espírito da polis, altamente particularizada, identificada com línguas e grupos sociais, com o advento do Cristianismo isso muda, pois em sua essência, o sobrenatural da religião é o fator que possibilita unidade universal, uma vez que, não é produto do interesse humano, não é do mundo, nem da raça, nem da nação, nem comprometida com um modelo civilizacional, nem de uma cultura específica.   (MARITAIN, p.42, 1942), e é por isso, que, para Chardin, o Cristianismo é a única salvação histórica para o mundo, mas não um cristianismo comprometido com o poder, maniqueísta, irreal, mas um Cristianismo cuja base da fé seja a mística. E nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, podemos encontrar, vários aspectos necessários para que o homem volte a viver uma vida com uma visão amorosa de um universo transfigurado (RIDEAU, p.40, 1965).


 2-  Conveniências e inconveniências históricas

A formação histórica Latino Americana deve, em muito de seus aspectos à atuação da Companhia de Jesus, de José de Anchieta no Rio de Janeiro e São Paulo, João Felipe Bettendorff no Maranhão; a Antônio Ruiz de Montoya,  no Paraguai. A  atuação da companhia é um assunto comum a boa parte dos povos da América do América do Sul.
            Nove anos depois de sua fundação, 15 dias depois de chegar ao Brasil, tinham início as missões para catequisar os índios e conter os colonos. Nóbrega funda na Bahia o Colégio dos Meninos de Jesus, começando por agregar em torno de si os curumins para lhes ensinar e catequizar, depois, funda outros colégios em São Vicente, Porto Seguro, Ilhéus, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo.
Por outro lado, os Jesuítas contribuíram também para preservar a identidade cultural indígena, compilando as línguas dos nativos em gramáticas e glossários (ver Pe. José de Anchieta – “A Arte de Gramática da Lingoa mais usada na costa do Brasil” e, Pe. Antônio Ruiz de Montoya - “Arte de La Lengua”), que permitiu que se falasse a língua nativa até o século XVIII em todo o sul da colônia.
Toda essa ação heroica, acontece no contexto de mudança civilizacional, e mais especificamente, no início do que depois se chamou Modernidade, marcados naquele momento pelo descobrimento da América e pela Reforma Protestante. Toda história da América se inicia juntamente com a formação da subjetividade moderna.
            Neste contexto, a catequização aconteceu ao mesmo tempo que a colonização e expansão do capitalismo e, portanto, ocorre do ponto de vista de uma visão Eurocêntrica, que aliada a interesses econômicos, acabou por gerar grandes genocídios humanos e culturais. Nesse sentido, houve mais propriamente a implantação de um modelo de Cristandade, e não do Cristianismo em sua essência.
Quando falamos em Cristandade, nos referimos ao Cristianismo que se historicisou na Europa e assimilou o mundo Grego,  Romano e o Judaico.
            Mas, o Cristianismo não se reduz a isso, e poderia, se houvesse tempo, se materializar nas culturas Americanas de outra forma, e, foi isso, o que os jesuítas procuraram realizar.
            Basta olhar para as mais potentes manifestações religiosas do Cristianismo na América Latina como a devoção a Nossa Senhora de Guadalupe e Nossa Senhora Aparecida, para notar o caráter interracial e regional dessas manifestações.
O que queremos dizer é que, a proposta da Pedagógica da Companhia de Jesus, embora já identificada com o poder, não essencialmente, depende de qualquer modelo de poder. Não podemos esquecer a luta da Companhia a favor dos Índios, a República Guarani, e a enculturação. Quando os missionários Franciscanos e Dominicanos tentavam levar a palavra de Deus para a China, foram rechaçados e martirizados, pois queriam pregar o Cristianismo Ocidental, que nada tinha a ver com a cultura chinesa. Ao mesmo tempo, os Jesuítas, abandonando o hábito talar e vestindo roupas de mandarim, se apresentavam como arquitetos, relojoeiros, astrônomos, e rezando a missa em chinês, sentados em posição de lótus, por mais de uma vez, quase conseguiram a adesão da China ao Cristianismo na pessoa do Imperador.
            Na América Latina salta aos olhos o esforço missionário que deu origem à República Guarani.  No entender de Hugon, “A republica Guarani foi, por seu lado, uma sociedade fraternal organizada segundo os princípios cristãos, no sentido em que a fraternidade estava praticamente inscrita na sua estrutura, seu regime de propriedade, seus modos de produção, e distribuição, em todas as suas instituições.” (p.10, 1968)
             Pierre François Xavier de Charlevoix, SJ (1682-1761), fala  “dessas repúblicas cristãs, de que o mundo ainda não vira o modelo, e que fundadas no meio da mais feroz barbárie, num plano mais perfeito que o de Platão, do chanceler Bacon e do  ilustre autor   de Télémaque, por homens que cimentaram seus alicerces apenas no próprio suor e sangue, que , animados apenas pelo gládio da palavra  e de Evangelho em punho, afrontaram o furor dos selvagens mais intratáveis, civilizaram-nos e deles fizeram cristãos que, século  e meio depois, causam a admiração de todos os que os viram mais de perto.” (In: HUGON, p.10-11,1968).
            Na Europa, a influência da Companhia, ia desde os palácios até às prisões.  O religiosos mantinham estreita ligação com o povo, tratavam com toda a gentalha, até o mais baixo nível social. Atraiam para os Exercícios, lacaios, cocheiros, se metiam nos hospitais, nas galeras e nas prisões, atraindo a atenção de Carlos III (1759 - 1788) da Espanha, pois na maneira de pensar do monarca não cabia ao povo nem refletir nem se queixar, mas apenas obedecer.” (MILLER, p 116, 1946).
            Com a subida ao trono de Portugal de José Francisco António Inácio Norberto Agostinho de Bragança, D. José I (1750 – 1777), homem medíocre que não tinha outro interesse senão o de cortejar as cortesãs, o governo passa a ser exercício por José Sebastião José de Carvalho e Melo, primeiro Conde de Oeiras e Marquês de Pombal, o “Richelieu”  português. Este para consolidar seu poder, ataca a Companhia de Jesus, não por “altos ideais” humanistas, mas simplesmente pelo fato de esses apoiarem a aristocracia que lhe era hostil. 
            Com o tempo, a perseguição contra a Companhia espalhou-se  para França,  Espanha, os reinos de Nápoles e da Sicília.
            Em 2 de fevereiro de 1769 morre Carlo Dela Torre Rezzonico, o Papa Clemente XIII, com a eleição do cardeal Canganell que assume o sólio pontifício com o nome de Clemente XIV (1769 – 1774). Para garantir o reconhecimento de sua eleição, cedeu à pressão dos Bourbons e de Pombal, e suprimiu a Companhia de Jesus em 1773 com  o breve Dominus ac Redemptor noster.
            Com tal onda de perseguição, tivemos o fechamento das casas dos Jesuítas em todo mundo, a destruição da República Guarani, da grande obra dos aldeamentos na Amazônia que em 1754, ombreava, senão até superava, as Reduções do Paraguai,  atrasou a ocupação da Amazônia, só retomada em uma outra lógica com regime Militar a partir de 1964, e pôs fim definitivo ao apostolado na China. É por isso que Eduardo Prado, diz que a obra perseguidora de Pombal foi para o Império Português um novo Alcacer Kibir. (In: Os Jesuítas do Brasil e da Índia na Perseguição do Marques de Pombal (século XVIII), ABL, Escola Tipográfica Salesiana, Baia, p, 17, 1936).  Com a batalha de Alcácer Kibir (04 de agosto de 1578)  ocorre o maior desastre militar  da História de Portugal que,  além do número de mortos, marcou  o fim do período do Império português na Índia e o principio do fim da segunda dinastia portuguesa e os 60 anos de governo estrangeiro em Portugal.
            Não era a luta dos defensores da liberdade contra o obscurantismo da Igreja, mas sim a luta do Absolutismo racionalista contra a liberdade cristã.
Ainda no século XX pode-se  sentir a influência da Companhia na atuação de seus homens Teilhard de Chardin (1881-1955), Karl Rahner (1904 -1984) Bernard Joseph Francis Lonergan (1904-1984) com o Método Empírico Generalizado, Rutilio Grande García morto em 1977 na luta contra o regime ditatorial de El Salvador, Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida (1930 – 2006), irmão Guy Consolmagno (astrônomo), Oscar Gozález Quevedo (parapsicólogo), e agora, na semana em que estamos  finalizando nossa pesquisa, vemos nossa intuição sendo confirmada pela subida ao sólio pontifício do  cardeal Jorge Mario Bergoglio S.J., “Qui Sibi Nomen Imposuit Franciscum”, com a missão de revigorar a Igreja no terceiro milênio, inaugurando uma nova “dinastia” de papas, voltados  para o “mundo” fora da Europa.
            O que moveu esses homens? Fanatismo? Sucesso? Holofotes? Dinheiro? Política? A diversidade e a radicalidade dos testemunhos desses homens, basta por si só para   rever nossos conceitos de análise, geralmente ideológicos, e repensar, procurar, o núcleo vital que fez mover tantas vontades, já que os “Exercícios “não dizem respeito à política, não é um conteúdo a ser ensinado, não estimula   a escalada social, mas, atingem o fundo do coração do Homem. Precisamos sair do modo obscurantista de analisar a religião e descobrir no fenômeno religioso a riqueza humana que o gerou.
            Desde o final do século XIX, que já temos a ciência das religiões estabelecida como disciplina autônoma, e que pode ser usada para a compreensão da realidade humana, uma vez que, o que acontece com a redução da explicação da realidade com base nas ciências experimentais nada mais é do que o conhecimento da matéria e não do humano. Assim vemos hoje a ciência procurar explicar o amor, a religião e afins, como simples fenômeno material. (DN Ciência, 2013).
            Não se trata absolutamente disso, pois assim voltamos ao problema do conhecimento formulado por Pascal   que diz que só podemos conhecer as partes se conhecermos o todo em que se situam, e só podemos conhecer o todo se conhecermos as partes que formam o Todo, que no caso do ser humano, não pode ser reduzido materialmente à soma das partes. É por assim dizer, o problema colocado por Mary Shelley quando faz seu Doutor Victor Frankenstein, a partir de partes de indivíduos mortos, construir a dar vida à uma criatura.
            O Homem, vê no universo material, sempre algo que o transcende. 
            Nas sociedades pré-modernas, o sagrado era evidente, porém, o homem ocidental viu a religião ser usada como instrumento de poder, como ideologia de dominação, e isso gerou uma reação que, com o auxílio da ciência, o libertou desse julgo totalitário que se utilizava das superstições para controlar o indivíduo e as massas.
            Por outro lado, a ciência nos fez acreditar que eram apenas  superstições  o que o Homem pré-moderno acreditava. No caso mais recente  do Protestantismo, estes ainda vêem na veneração  de  imagens pelos Católicos, assim como na veneração de “pedras” e “árvores” pelos povos primitivos, superstições, mas não conseguem perceber as “hierofanias”, que revelam algo que já não o objeto material, mas o sagrado.  (ELIADE, p. 13,1992)

 3 – A Espiritualidade de Santo Inácio de Loyola  

            As escolas espiritualistas se desenvolveram ao longo da História do Cristianismo.  No período da Patrística, começam a ser elaborados os escritos que servirão de base para a ciência da espiritualidade, com duas grandes sínteses, a de Cassiano no Ocidente e a de São João Clímaco no Oriente. Tratam-se do resumo de toda a espiritualidade monástica dos quatro primeiros séculos.
Na Idade Média, temos várias escolas que elaboram e sintetizam os elementos de espiritualidade pelas obras dos santos Padres, destacando a Escola Beneditina, a de São Vitor, a Dominicana, a Franciscana, a escola Mística Flamenga que conta entre outros com o famoso Tomás de Kempis.
Na Idade Moderna, a escola Beneditina conserva suas tradições mas faz significativos avanços no que diz respeito à precisão doutrinária, a escola Dominicana explica e sintetiza com clareza e método a ascese e a contemplação, e, surge a escola Inaciana (de Santo Inácio de Loyola – Fundador da Companhia de Jesus – 1491 - 1556).
A escola Inaciana é caracterizada por pregar uma espiritualidade ativa, enérgica, prática, com o intuito de formar a vontade, reformando e transformando a alma.  Não se trata de uma espiritualidade nova, mas do requinte, que condensa um vasto movimento de alma e de pensamento, desenvolvidos ao longo dos séculos, que remontam à origem do Cristianismo.  Para melhor conhecer suas características, temos que nos servir dos escritos de Santo Inácio, plasmados nas Constituições e Cartas, na Narração do Peregrino e nos Exercícios Espirituais. Iñigo Lópes de Loyola, era homem militar de origem nobre, de costumes mundanos, que em 1521, quando a cidade de Pamplona foi sitiada pelos Franceses, sofreu grave ferimento na perna quando da   defesa da praça forte.  Levado para o castelo de Loyola, homem de atividade que era, teve que ficar um ano em  repouso, tempo no qual acabou por se familiarizar com a piedade cristã e a contemplação.  Dizem seus biógrafos, que de leitura serviram-lhe o “Ejercitatorio de La vida spiritual” do Abade Cisneros, de Monte-Serrate, uma compilação de São Bernardo, dos Vitorinos, e dos Cisneros, e dos mestres Neerlandeses da “devotio moderna”; o segundo era a “Imitação de Cristo”, de Thomas de Kempis.
A leitura desses manuais ofereceu a Inácio a concepção de que a vida virtuosa não consiste em práticas exteriores de penitência, mas na purificação da alma e o abandono à vontade de Deus. Também o fez perceber a necessidade da ordenação metódica da vida interior, para impedir que a alma fique à mercê do momento e da vaidade. Estes são os princípios básicos dos exercícios a que ele próprio se submeteu em sua experiência individual na gruta de Manresa, e que depois se tornou “Livro de Exercícios Espirituais”, e que fez com que seu autor experimentasse uma vivência íntima de lutas interiores em um amálgama do espírito militar e elevação mística, que proporcionou a Inácio ordenar os afetos, as imagens, as divagações, os temores que borbulhavam em sua alma. (TÜCHLE, G & BOUMAN.C.A, p.132-133, 1971)
            Inácio funda a Companhia de Jesus juntamente com Pedro Fabro, Francisco Xavier, Alfonso Salmerón, Diego Laynez, Nicolau de Bobadilla e Simão Rodrigues, e juntamente com os Exercícios, dá a ela uma Constituição.  As constituições da Companhia de Jesus e os Exercícios Espirituais se complementam mutuamente, numa relação como a de espírito e corpo, teoria e prática, cujo “coração pulsante” é o amor.
            Tudo aquilo que foi meditado nos “Exercícios” passa para o plano prático nas Constituições, e se transformam em atitudes, tendo por ideal, simplesmente servir e agradar a Deus.  Quando Inácio propõe para seus companheiros a pobreza absoluta, leva em consideração motivos espirituais e também fatores naturais do ser humano, e com isso, tem por escopo:

“Maior força espiritual da Companhia, mais devoção e mais semelhança com Jesus Cristo;
A Destruição de toda ambição humana;
Maior união com a Igreja e conformidade maior com Jesus Cristo sacramentado;
Mais pura esperança em Deus;
Mais humildade com Jesus Humilhado;
Privação de todo consolo humano;
Maior esperança e diligência;
Maior edificação;
Mais liberdade de espírito e maior eficácia nos ministérios;
Maior estímulo para trabalhar;
Maior força para persuadir a  pobreza;
Melhor disposição para as peregrinações e trabalhos;
Mais perfeita prática da pobreza;
Mais pura aceitação da doutrina evangélica;”
 (LOYOLA, p.267, 1952 - Deliberação sobre a Pobreza).

            No plano prático, as constituições vão exigindo do Jesuíta o desprendimento de tudo: criaturas, honras, riquezas.  Da meditação sobre as duas bandeiras nos Exercícios, temos uma prosposta clara de escolha para o indivíduo  e nas Constituições se dá o direcionamento prático. Os Exercícios são de cunho essencialmente individual e as Constituições têm seu aspecto estritamente social. Com os Exercícios se dá um método para que em um determinado tempo se vá diretamente à alma, se estabeleça as relações entre Deus e a pessoa, nas Constituições a vida da Companhia é ordenada como um todo, nas relações internas, jurídicas, práticas de ação e de hierarquia.

 4 -  Os Exercícios Espirituais 

            O texto dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, pode ser condensado em um pequeno livro de cem páginas. Não é uma obra colossal. Não é feita para ser lida, mas para ser vivida com a orientação de um diretor espiritual experiente.  Seus elementos essências são três:  as anotações, os exercícios e as meditações, que podem ser cumpridos em mais ou menos trinta dias, e adaptado de acordo com o perfil do exercitante.  Já de início, oferece os princípios e os fundamentos da vida cristã e explica como se deve praticar os exercícios.   Na primeira semana, faz considerações sobre os fins últimos do homem, depois de aprender as regras de exame e meditação, concentra as considerações sobre o pecado e o inferno.  Na segunda semana, o exercitante, coloca-se diante de Jesus e de seu reino, a fim de compreender profundamente a obra do Verbo encarnado e estar em condições de fazer eleição de uma vida fiel aos princípios dessa obra. Nas terceira e quarta semanas, - a terceira parte dos exercícios que consistia em meditação sobre a morte e ressureição de Cristo -   se fortalecia a eleição feita pelo exercitante para seguir o caminho escolhido.
            Falando mais especificamente, Exercícios Espirituais visam dispor o indivíduo a ordenar sua vida, sem determinar-se por afeição alguma que seja desordenada. Loyola considera que Os Exercícios Espirituais são análogos a exercícios físicos, e, compreendem toda forma de examinar a própria consciência, contemplar, meditar.... 

A décima quinta anotação “aquele que dá os exercícios, não deve mover ao que recebe mais a pobreza nem a promessa ,que a seus contrários, nem a um estado ou modo de viver, que a outro. Porque, dado que fora dos exercícios,  lícita e meritoriamente, podemos mover a todas as pessoas, que provavelmente tenham condições, para escolher continência, virgindade, religião e toda maneira de perfeição evangélica; também nos tais exercícios espirituais mais conveniente e muito melhor é, buscando a divina vontade, que o mesmo Criador e Senhor se comunique à alma devota, abrasando-a em seu amor e louvor, dispondo-a no caminho que melhor poderá servir mais adiante.  De maneira que o que prega os exercícios não separe, nem se incline a uma coisa nem a outra, mas estando no meio como um peso, deixe agir o Criador com a criatura, e a criatura com seu Criador e Senhor.” (LOYOLA, p. 157, 1952 -  Ejercicios Espirituales)

            No âmbito da piedade Cristã, os exercícios são uma forma de preparar e dispor a alma para que, retamente ordenada, possa em tudo, amar e servir sua Divina Majestade.  É uma escola de oração, de intima união com Deus, através da eleição.
 Terceiro ponto do segundo exercício de meditação “olhar para seu eu diminuindo-me por exemplos:  primeiro, quanto sou eu em comparação a todos os homens; Segundo que coisa são os homens em comparação de todos os anjos e santos do paraíso; terceiro olhar para o todo criado em comparação a Deus. Quarto,  olhar para minha corrupção e feiura corpórea; Quinto olhar-me como uma  chaga e abscesso  de onde saem tantos pecados e tantas maldades  e veneno torpíssimos. (Ibidem, p 172)

            Discernindo então o bem e o mal, os Exercícios colocam o Homem diante de uma escolha.
Preâmbulo para considerar os estados da alma: 
“Meditação das duas bandeiras – A de Cristo, sumo capitão e Senhor nosso; a outra de Lúcifer, mortal inimigo de nossa natureza humana.”  P .186 -  essa Meditação encaminha para a completa ordenação do entendimento, para impedir que a alma se engane na orientação da vida.   Terceiro preâmbulo:  determinar o que quero; e será aqui, pedir conhecimento dos enganos do mau caudilho e ajuda para deles me guardar, e conhecimento da vida verdadeira que mostra o sumo e verdadeiro capitão, e graça para o imitar.  (Ibidem, p.186)

Para tomar notícia de que coisas se deve fazer eleição.
Primeiro ponto “O primeiro ponto: é necessário que todas as coisas, das quais queremos fazer eleição, sejam indiferentes ou boas em si, e que militem dentro da Santa Madre Igreja Hierárquica, e não más nem repugnantes a ela”.

“Nas coisas onde há mais trabalhos corporais, pessoas mais robustas e sanas.
Nas que há mais perigos espirituais, pessoas mais provadas na virtude e mais seguras.” (Ibidem, p. 513 - Constituições – Sétima parte, capitulo 2)

“Todas as coisas que existem sobre a terras são criadas para o homem,  para que lhe ajudem a alcançar o fim para que foi criado.  Então, o homem pode se utilizar delas, se ajudarem a alcançar seu fim, ou, deixa-las de lado a medida que o impedem. Portanto, devemos nos fazer indiferentes a todas as coisas criadas, em tudo o eu é permitido à nossa vontade, e não lhe está proibido, de tal maneira que não queiramos de nossa parte mais saúde que enfermidade, riqueza que pobreza, honra ou desonra, mais v ida longa do que curta, e assim, com todas as outras coisas; somente desejando e elegendo o que mais nos conduz para o fim para que fomos criados.” (Ibidem, Idem, p 162)

“Cada vez que o homem caia no pecado ou no defeito particular que pretendeu corrigir, ponha a mão no peito, aflito por haver caído (de modo discreto para que outros não percebam o que faz)” (Ibidem, idem, p. 163)

            Inácio, considera três pensamentos: um que é próprio dele, o que provém da minha própria liberdade e querer, e os outros dois que vêm de fora, um proveniente do bom espírito e outro do mal.

Contemplação para alcançar o amor

O amor deve ser posto mais nas obras que nas palavras.
Segunda – o amor consiste na comunicação das duas partes, é a saber, em dar e comunicar o amante ao amado o que tem ou o que tem ou pode, e assim, ao contrário, o amado ao amante; de maneira que se um tem ciência, dar ao que não a tem, se honras, se riquezas, e assim, um ao outro.” (Ibidem, idem p. 204)

No segundo perambulo, Loyola,  pretende trazer à memória todos os benefícios recebidos da criação, redenção e dons particulares, as maravilhas da criação. Nesse ponto está a consideração, que posteriormente foi transformada na belíssima oração de Sto. Inácio:

Tomai, Senhor, e recebei toda a minha liberdade e a minha memória também.
O meu entendimento e toda a minha vontade, tudo o que tenho e possuo vós me destes com amor.
Todos os dons que me destes com gratidão vos devolvo.
Disponde deles, Senhor, segundo a vossa vontade.
Dai-me somente o vosso amor, vossa graça.
Isto me basta, nada mais quero pedir. (Ibidem, idem, p. 205).

Em seguida, temos a contemplação dos mistérios da vida de Jesus (Ibidem, idem, p.209-206). Vale a pena ressaltar o detalhe que, nos exercícios, não é dito o que o exercitante deve pensar, mas sugerido a ele, imaginar as cenas, o ambiente, ou seja, vivenciar mentalmente, o evangelho.
            Aquele que entra nos exercícios Espirituais, deve fazer a entrega de todo o seu ser, sua alma, inteligência e sensibilidade. Exercitar-se espiritualmente é fazer desencadear no íntimo do indivíduo poderosos movimentos da paixão, de amor, de ódio, de tal modo que cada uma das suas palavras e cenas meditadas provoque uma introspecção capaz de mover de forma irresistível a vontade, de modo a se tornar incapaz de ceder ao mal em virtude do próprio amor que terá cultivado dentro de si.  A finalidade dos Exercícios nada mais é do que a de conhecer-se melhor e a de governar sua alma. Os exercícios situam a criatura face a seu criador, realizam a experiência da liberdade e a educam com a aquisição da indiferença, conduzem à ação, educam a obediência e a consciência comunitária. O Exercícios colocam Deus no centro da vida, ensinam a ver tudo, a julgar tudo segundo Deus, dão a alegria da fé, robustecem a autonomia e a responsabilidade própria, diante de Deus, dão força para romper com a influência da massa e para resolver por si mesmo e agir de acordo com sua consciência.


5 – Os Exercícios Espirituais, um exercício de liberdade.

            Considerar o caráter da educação Jesuítica poderá revelar uma ação mais positiva e progressista, diferente das críticas de seus acusadores, e da pieguice de seus defensores.
Para tanto temos que nos afastar de certos estereótipos que já viraram lugar comum, e hoje não funcionam mais como explicação da realidade.
            O Homem, ao longo da história, construiu três grandes sistemas interpretativos do Mundo que são:  a Religião, a Filosofia e a Ciência.
Sabemos que, há cinco séculos no Ocidente, o modelo medieval vem sendo desconstruído, e no campo social e político passamos por várias revoluções que visam a reformulação de todo o sistema. Temos a Reforma Protestante, a Revolução Francesa e a Revolução Comunista, que constituem eventos que transformaram o mundo. No âmbito da Igreja, houve o Concílio Vaticano II (1962-1965) que por sua vez, foi também um evento que mudou atuação do catolicismo, no sentido de abrir a Igreja para toda a pluralidade e complexidade do mundo moderno. A Igreja demorou cinco séculos para superar a Idade Média, e agora, trabalha na construção de uma nova Cristandade, diversa daquela que existiu até hoje.
            Nesses cinco séculos, a religião não foi superada, o que houve, foi um desmonte dos sistemas de significação do mundo baseados na metafísicas e no sagrado, mas, achar que isso é a essência dos sistemas de significação é não perceber que uma vez feita a desconstrução, o que acabou ficando foi o que não foi capaz de ser resignificado nem racionalizado sob nenhum aspecto. A maior parte da população mundial ainda se move dentro dos esquemas religiosos de interpretação do mundo.
            Há aí uma ambiguidade típica da pós modernidade. Há uma crescente recusa  dos indivíduos modernos em  aceitar os preceitos da religião, em especial da Igreja Católica Apostólica Romana devido a inclinação “totalitária” dessa, bem como de outras religiões, ao mesmo tempo que, “a fé surge  então no coração da modernidade tardia, como uma categoria  teológica carregada de novos sentidos: recorda a finitude  intrínseca e a  contingência inevitável que marcam a condição histórica e linguística de todo projeto social, sexual, econômico ou religioso. Mas sobretudo, inaugura um horizonte de vida e de compreensão marcado pela gratuidade do real.” (MENDOZA-ÁLVAREZ,  p.  59; 48, 2011).
            O sagrado mediado pela fé constituem um dos fatos que faz com que o ser humano se liberte do seu próprio ego em um processo de abertura do sujeito para uma realidade cósmica e inclusiva, e que portanto o libertaria das visões ideológicas dos sistemas que nos tentaram enquadrar durante o século XX,  tanto em seus aspectos ideológicos como econômicos (comunismo e capitalismo).
            Nesse sentido, Boff nos explica que o homem possui duas dimensões distintas constituintes de sua realidade que são a imanência e a transcendência.  A transcendência foi trabalhada pelas religiões em uma lógica dicotômica, Deus lá em cima no céu, e cá embaixo a imanência; céu, inferno; Deus, Mundo; corpo, alma. (BOFF, 2000).
            Criticar a compreensão dicotômica entre o transcendente e o imanente é o momento de interpretação da realidade que temos atualmente. Esse esquema nos permite negar o transcendente em favor dos aspectos imanentes da realidade humana. 
            De agora em diante, já temos ferramentas parta compreender que o imanente e o transcendente são dimensões de uma única realidade, a realidade humana.
            Como diz Morin, “vivemos numa realidade multidimensional, simultaneamente econômica, psicológica, mitológica, sociológica, mas estudamos estas dimensões separadamente, e não umas em relação com as outras” (MORIN, p.2, 2013).
            A releitura das dimensões transcendente e  imanente do ser humano, pode contribuir em muito para repensar os valores da sociedade atual, situada em um contexto global de Comunidade de destino. Nesse sentido, podemos ter como exemplo a mensagem de Bento XVI para a Assembleia Geral das Nações Unidas que diz que; “O valor transcendente de todo homem e de toda mulher favorece a conversão do coração, o que produz então um engajamento contra a violência, terrorismo ou guerra, e à promoção da justiça e da paz” (2008).
            Tal contribuição deve se dar pela educação.  A educação foi sempre parte do ministério da companhia, pois como vemos na visão fundamental jesuítica todo o serviço ao próximo tem um fator de transformação.  A educação Jesuítica não é baseada na repetição, como podem nos fazer crer   Toledo e Skalinski Junior  (2011)  e Sousa (2003).  A contrário, “nenhuma ação com base na espiritualidade jesuítica é meramente uma repetição de conteúdo, fórmulas ou ritos, que por si só não transformam as pessoas, todo serviço ao próximo é um fator de transformação”. (PACHÓN, 2013).
            Assim, podemos entender os “Exercícios” não somente como uma transmissão de doutrinas e da salvação da alma, mas também como  uma ferramenta para o aperfeiçoamento e saúde espiritual.  (Rovira & Calveras In: LOYOLA, p. 161, 1952)  
            Os Exercícios criam pessoas no sentido de criar o homem adulto plenamente desenvolvido desenvolvendo o amor e a sabedoria dando consistência da percepção que tem do mundo, através da unidade e integridade da alma desenvolvida no seu universo interior consciente de si, capacitando-o a buscar a unidade do conhecimento na unidade da consciência cognitiva e moral e vice versa. O indivíduo faz assim uma síntese do humano e do divino na vida para chegar a ter uma visão coerente do mundo, que represente uma jerarquia de valores. Os exercícios iluminam a mente apresentado a ela o drama da existência humana, formam o homem na reflexão e no controle de si mesmo, põe manifestos o valor de todos os elementos de ordem natural e sobrenatural para a formação da consciência humana.
            Alguém poderia objetar que a mera reflexão sobre o céu e o inferno, por si só desacreditaria os Exercícios por não serem realidades empíricas ou por entregar o Homem ao irracional.
            Poderia ser, se nós utilizarmos de um referencial conflituoso entre fé e razão, entre ciência e religião, mas poderíamos entender assim:
“O sagrado é o conjunto dos postulados aos quais o espírito humano é conduzido pelas transferências coletivas sobre as vítimas reconciliadoras, no termo das crises miméticas. Longe de constituir um abandono ao irracional, ao sagrado, constitui a única hipótese possível, para os homens, enquanto essas transferências subsistirem em sua integridade.”  (GIRARD, p. 65, 2009)
            Dessa forma,
“Por trás dos disfarces sobrenaturais, a sabedoria empírica dos interditos seria facilmente identificável se a morna demagogia moderna de transgressão não obrigasse, mesmo os melhores espíritos, a isolar de seu contexto os aspectos mais absurdos dos interditos para ressaltá-los. Mesmos disfarces sobrenaturais contribuem para proteger os homens contra sua própria violência. Afirmando que a infração acaba na vingança de uma divindade no lugar das rivalidades intestinas, o religioso trabalha duplamente para desencorajá-las, envolvendo-as num mistérios que apavora os homens e liberando a comunidade da desconfiança e das suspeitas que seriam inevitavelmente alimentadas por uma visão menos mística de ameaça.” (Ibidem p. 64)

            Então, na perspectiva girardiana, quando nos Exercícios se fala no Reino de Deus, podemos entender esse como “eliminação completa e definitiva de qualquer vingança e de todas as represálias nas relações entre homens.
            Jesus transforma tudo isso, na vida cotidiana, num dever absoluto, uma obrigação sem contrapartida, que exclui exigência de reciprocidade.” (Ibidem p. 243).
            Por fim, podemos dizer que  os “Exercícios” como prática pedagógica, contribuiria  para formação do sujeito autônomo na medida em que fosse utilizado como  antídoto à  Civilização da Imagem  que bombardeia a cada um de nós  gerando a massificação e a despersonalização por via da extroversão excessiva ,opondo-se a ela por meio do recolhimento interior e da análise e reflexão  de que cada um de nós é criado para conhecer, amar e servir a Deus (que nos coloca acima de nossa condição meramente animal)..., e que  as outras coisas  sobre a face da terra são criadas para o homem, para que  o ajudem  a alcançar o fim para que  é criado. Donde segue que há de usar delas tanto quando o ajudem a atingir seu fim, e há de privar-se delas tanto quanto dele o afastem). (LOYOLA, p.161-162, 1952).
            Essa liberdade interior, meditada, o escolher o que me faz bem e o que me faz mal, beira a autonomia do sujeito que se pretende constituir com uma educação kantiana, sem as correntes de um imperativo categórico. O homem encontra na correlação imanência-transcendência uma abertura cósmica, com bases na sua própria natureza que o impulsiona à alteridade para encontrar aí seu cumprimento.

 Considerações Finais

O tema da formação do indivíduo autônomo está na ordem do dia  no âmbito educacional.  
A sociedade vem passando por transformações econômicas e tecnológicas que não permitem uma posição de indiferença.  Os valores que regiam  a sociedade até pouco tempo, não são mais capazes de  manter a ordenação social  e individual. Por outro lado, desde a anulação histórica da religião, vemos a estrutura social ruir em um processo já cinco vezes milenar de desmonte dos esquemas  até então constituídos  pelo clero, nobreza, burguesia e povo, que hoje não  são capazes de  realizar sua função simbólica ordenadora, e, assim, a ordem  perde sua realidade estrutural, dando lugar a formas sutis de violência contra o individuo, traduzindo principalmente na realidade da injustiça social.  Por esse motivo, a escola tem um papel importante na ressignificação da ordem, através da reflexão ética.
            Mas a escola é o lugar de encontro entre duas esferas de significação distintas, provenientes as duas do povo, mas que tem no seu ponto mais elevado (professores) a influência dupla  no sentido de ser ao mesmo tempo:  povo e representante de uma certa “elite intelectual” acadêmica.  Alunos e professores compartilham da realidade escolar, trazendo cada um , seus valores e crenças.
Por isso, escola pode ser uma instituição capaz de repensar, reconstruir, ressignificar e legitimar valores para esse novo momento histórico. Certamente o processo de reconstrução moral não deve passar  por uma atitude utilitarista, que tem em si  o germe que esteriliza a própria ação moral.
 A Escola só a escola  não poderá satisfazer  essa exigência superior da moral. Será preciso recuperar a organicidade da vida social.
            Reunificar as dimensões  racional e espiritual do ser humano parece ser melhor caminho do que a artificialidade do imperativo categórico kantiano. Os  Exercícios  fazem com que o indivíduo mergulhe dentro de si, auxiliado por elementos comuns a nossa tradição espiritual, recuperando a riqueza da tradição cristã, meditando  na humildade, tomada de decisão, escolha entre o bem e o mal, em um caminho de liberdade e de prática da reflexão e da coerência de vida, opostos ao atual modelo de vida em que a vontade é movida pelo desejo de consumo.
            Ao contrário do que se possa objetar, não seria necessário a ingerência do catolicismo nas instituições de ensino e  nem mesmo nas práticas particulares dos Exercícios. Não seria necessário nem sequer acreditar em Deus (MARTIN, p.28, 2012), pois , o que na verdade está em jogo nos  Exercícios é o aprofundamento em si mesmo, em um contato profundo com a própria vida, permitindo  que a vida  cure a própria vida, ressignificando os sentimentos de baixeza de exclusão,  reconhecendo suas obscuridades, mas também seus pontos “luminosos”, em uma viagem auto controlada pelas dimensões do sagrado e do profano que compreendem nossa existência. Assim como o estudo da Arte não implica em nos tornarmos impressionistas ou surrealistas,  a prática  dos Exercícios não implica necessariamente em sermos ou não cristãos, uma vez que não se trata de uma aquisição passiva de saber,  mas,  em tomarmos distância das emoções de massa, para  a libertação interior.

REFERÊNCIAS

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HUGON, C.  A República Comunista Cristã dos Guaranis.  ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1968.
LAMET, Pedro Miguel S.J. Arrupe, una explosión en la Iglesia. Ed. Temas de hoy, Madrid, 1989. http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Arrupe; (acesso em 12/10/2011, 14:08)
LE BON, Gustave. As Opiniões e as Crenças.  Edição Ridendo Castigat Mores. Versão para eBookeBooksBrasil.org , 2005
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 PACHÓN SJ, Adolfo Nicolás. El P. General Adolfo Nicolás Pachón, SJ, habla sobre educación durante su conferencia en el Auditorio Pedro Arrupe, SJ, campus ITESO. http://www.youtube.com/watch?v=ItqkLJHKMsI  (Acesso em 07/01/2013, 22:00)
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