SE O TEMPO FOSSE OURO..., TALVEZ PUDESSES PERDÊ-LO. - MAS O TEMPO É VIDA, E TU NÃO SABES QUANTA TE RESTA.

sábado, 17 de setembro de 2022

A sala 101

http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_george_orwell_1984.pdf



A sala   101

- Existe o Grande Irmão?

- Naturalmente existe. O Partido existe. O Grande Irmão é a corporificação do Partido.

Mas existe da mesma maneira que eu existo? Tu não existes. De novo a sensação de impotência o assaltou. Sabia, ou podia imaginar, os argumentos que provavam sua não-existência; mas eram insensatos, não passavam de jôgo de palavras. Não continha a afirmativa "Tu não existes" um absurdo em lógica? Mas de que adiantava dizê-lo? Sua mente encolhia-se só de pensar nos argumentos loucos, irrespondíveis, com que O'Brien o demoliria.

- Creio que existo - respondeu. - Tenho consciência de minha própria identidade. Nasci, e morrerei. Tenho braços e pernas. Ocupo um determinado ponto no espaço. Ao mesmo tempo, nenhum outro sólido pode ocupar o mesmo  ponto. Nesse sentido, existe o Grande Irmão?

- Não tem importância. Existe.

- O Grande Irmão morrerá?

- Lógico que não. Como poderia morrer? Outra pergunta.

- Existe a Fraternidade?

- Isso nunca saberás, Winston. Se resolvermos te pôr em liberdade quando acabarmos a tarefa, e mesmo que vivas até os noventa, nunca saberás se a resposta a essa pergunta é Sim ou Não. Enquanto viveres será um enigma  insolvível na tua cabeça.

Winston guardou silêncio. Seu peito ofegou um pouco mais depressa. Ainda não fizera a pergunta que lhe viera em  primeiro lugar à mente. Tinha de fazê-la, e no entanto era como se a língua se recusasse. Havia uma sombra de  jocosidade no rosto de O'Brien. Até os seus óculos pareciam despedir lampejos irônicos. Êle sabe, pensou Winston  de  repente, êle sabe o que vou perguntar! E a isso as palavras lhe brotaram dos lábios:

- O que é a Sala 101? Não mudou a expressão do rosto de O'Brien. Respondeu secamente:

- Sabes o que há na Sala 101, Winston. Todo mundo sabe o que há na Sala 101.

Apontou com o dedo o homem de branco. Evidentemente., encerrara-se a sessão. A agulha mergulhou no braço de Winston. Quase imediatamente êle mergulhou no sono profundo.

- Há três estágios na tua re-integração - disse O'Brien.

- Aprender, compreender e aceitar. É hora de iniciares o segundo.

Como sempre, Winston jazia em decúbito dorsal. Mas já não se sentia tão fortemente ligado. Ainda estava amarrado à cama, porém podia mexer um pouco os joelhos, mover a cabeça de um lado para outro e levantar os braços,  dobrando os cotovelos. O mostrador, também, já não o aterrorizava tanto. Podia fugir às suas picadas se fosse  bastante alerta: em geral era quando demonstrava estupidez que O'Brien acionava a alavanca. Às vezes,  atravessavam uma sessão inteira sem que o aparelho fosse usado. Não podia lembrar-se de quantas sessões sofrera.

Todo o processo parecia prolongar-se por um período enorme, indefinido - semanas, possívelmente - e o intervalo  entre as sessões às vezes era de alguns dias, outras de apenas uma hora ou duas.

- Enquanto estás aí deitado - disse O'Brien - muitas vezes perguntas a ti mesmo... e até a mim... por que é que o  Ministério do Amor gasta tanto tempo e tanto esfôrço contigo. E quando eras livre também te admirava essencialmente a mesma pergunta. Podias perceber a mecânica da sociedade em que vivias, mas não os motivos  orientadores. Lembras-te de que escreveste no teu diário "Compreendo como; não compreendo por que?" Era quando pensavas no por que" que duvidavas do teu estado mental. Leste o livro, o livro de Goldstein, ou trechos dêle, pelo menos. Reveloute alguma coisa que já não soubesses?

- Leste o livro?

- Eu o escrevi. Isto é, colaborei na sua autoria. Nenhum livro é produzido individualmente, como sabes.

- E é verdade o que diz o livro?

- Como descrição é. O programa que estabelece é insensato. O entesouramento secreto da sabedoria... a propagação gradual do esclarecimento... por fim uma rebelião proletária... a derribada do Partido. Tu mesmo previste o que êle diria. É tudo bobagem. Os proletários nunca se revoltarão, em mil anos, ou num milhão de anos., Não podem. Não preciso dizer-te a razão: já a conheces. Se algum dia acariciaste sonhos de insurreição violenta, deves abandoná-los.

Não há maneira de se deitar o Partido abaixo.

O domínio do Partido é eterno. Isso deve ser o ponto de partida dos teus pensamentos.

Aproximou-se mais da cama.

- Eterno! - repetiu. - E agora, voltemos à questão do como e do por que. Compreendes bem como o Partido se mantém no poder. Agora, dize-me, porque nos agarramos ao poder. Qual é o nosso motivo? Por que devemos querer o poder? Vamos, fala - acrescentou, vendo que Winston calava.

Não obstante, Winston continuou calado por mais alguns instantes. Dominara-o uma profunda sensação de cansaço.

Voltara ao rosto de O'Brien o débil e dôido lampejo de entusiasmo. Êle sabia de antemão o que diria Ó'Brien. Que o Partido não buscava o poder em seu próprio benefício, mas pelo bem da maioria. Que procurava o poder porque os homens da massa eram criaturas débeis e covardes que não podiam suportar a liberdade nem enfrentar a verdade, e que deviam ser dominados e sistemàticamente defraudados por outros, mais fortes que êles. Que para o gênero humano a alternativa era liberdade ou felicidade e que, para a grande maioria, era preferível a felicidade. Que o Partido era o eterno guardião dos fracos, uma seita dedicada fazendo o mal para que o bem pudesse reinar, sacrificando sua própria felicidade à felicidade alheia. O terrível, raciocinou Winston, o terrível era que, dizendo isso, O'Brien estaria sendo sincero. Via-se-lhe na fisionomia. O'Brien sabia tudo. Mil vezes melhor que Winston, sabia como o mundo era, na realidade, em que degradação vivia a massa dos seres humanos e por meio de mentiras e barbaridades o Partido os mantinha nesse nível. Compreendia tudo, pesava-o, e não fazia diferença: era tudo justificado pelo intuito derradeiro.

Que podes fazer, pensou Winston, contra o lunático que é mais inteligente que tu, que ouve equânime os teus argumentos e simplesmente persiste na sua loucura?

- Vós nos governais em nosso próprio benefício - disse, com um fio de voz. - Acreditais que os seres humanos não têm capacidade para se governar e porisso...

Deu um estremeção e quase gritou. Uma descarga dolorosa lhe percorrera o corpo. O'Brien levara ao trinta e cinco o ponteiro do aparelho.

- Isso foi cretino, Winston, cretino! Bem sabes que não devias dizer uma coisa dessas.

Levou a alavanca à posição neutra e continuou:

- Eu responderei minha pergunta. O Partido procura o poder por amor ao poder. Não estamos interessados no bem estar alheio; só estamos interessados no poder. Nem na riqueza, nem no luxo, nem em longa vida de prazeres:  apenas no poder, poder puro. O que significa poder puro já compreenderás, daqui a pouco. Somos diferentes de todas as oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos fazendo. Todas as outras, até mesmo as que se assemelhavam conosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os comunistas russos muito se aproximaram de nós nos métodos, mas nunca tiveram a coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam, talvez  até acreditassem, ter tomado o poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a esquina para entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres. Nós não somos assim. Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura com o fito de salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura.

O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora  começas a me compreender?

Winston ficou admirado, como já ficara antes, pelo cansaço do rosto de O'Brien. Era forte, carnudo e brutal, cheio  de inteligência e de uma espécie de paixão controlada diante da qual êle se sentia inerme; mas estava cansado. Tinha olheiras fundas, e as bochechas estavam flácidas. O'Brien inclinou-se sôbre êle, aproximando de propósito a cara gasta.

- Estás pensando que meu rosto está velho e cansado. Estás pensando que falo do poder, e no entanto não consigo  deter a deterioração do meu próprio corpo. Não podes com[1]preender, Winston, que o indivíduo é apenas uma célula?

O cansaço da célula é o vigor do organismo. Acaso morres quando aparas as unhas?

Afastando-se da cama e pôs-se a passear de um lado para outro, com a mão na algibeira.

- Somos os sacerdotes do poder - disse...Mas no momento, para ti, poder é apenas uma palavra. É tempo de teres uma idéia do que significa poder. A primeira coisa que deves entender é que o poder é coletivo. O  indivíduo só tem poder na medida em que cessa de ser indivíduo. Conheces o lema do Partido: "Liberdade é Escravidão." Já te ocorreu que é reversível? Escravidão é liberdade. Sózinho, livre, o ser humano é sempre derrotado. Assim deve ser, porque todo ser humano está condenado a morrer, que é o maior dos fracassos. Mas se puder realizar uma submissão completa, total, se puder fugir à sua identidade, se puder fundir-se no Partido então êle é o Partido, e é onipotente e imortal. A segunda coisa que deves entender é que poder é o poder sôbre todos os  entes humanos. Sôbre o corpo mas, acima de tudo, sôbre a mente. O poder sôbre a matéria - realidade externa, como  a chamarias -não é importante. E o nosso poder sôbre a matéria já é absoluto.

Por um momento, Winston ignorou o mostrador. Fez um violento esfôrço para se sentar, e só conseguiu torcer o  corpo dolorosamente.

- Mas como podes controlar a matéria? - explodiu.

- Não consegues nem dominar o clima nem a lei da gravidade. E há a doença, a morte, a dor...

O'Brien calou-o com um gesto.

- Controlamos a matéria porque controlamos a mente. A realidade está dentro da cabeça. Aprenderás aos poucos,

Winston. Não há nada que não possamos fazer. Invisibilidade, levitação. .. tudo. Eu poderia flutuar no ar, como uma  bolha de sabão, se quisesse. Mas não quero, porque o Partido não o deseja. Deves abandonar essas idéias século  dezenove a respeito das leis da Natureza. Nós fazemos as leis da natureza! Não fazeis! Não sois donos do planeta. E  a Eurásia e a Lestásia? Ainda não as vencestes.

-Não importa. Haveremos de dominá-las quando nos convir. E se não, que diferença faz? Podemos bani-las da  exístencia. A Oceania é o mundo.

- Mas se o mundo não passa dum grão de pó! E o homem é minúsculo - inerme! Há quanto tempo existe? Durante milhões de anos a terra foi desabitada.

- Tolice. A terra é tão velha quanto o homem, e nada mais. Como poderia ser mais velha? Nada existe excepto pela  via da consciência humana.

- Mas as rochas estão cheias de ossos de animais extintos - mamutes, mastodontes, e répteis enormes que viveram aqui muito antes do homem aparecer.

- Já viste êsses ossos, Winston? Naturalmente não. Os biólogos do século dezenove os inventaram. Antes do homem, não havia nada. Depois do homem, se por acaso acabasse, nada haveria. Fóra do homem não há nada.

- Mas o universo inteiro está fora de nós. Considera as estrelas. Algumas estão a um milhão de anos-luz de distância.

Estão para sempre fóra de nosso alcance.

- Que são estrelas? - indagou O'Brien, indiferente.

- São pedacinhos de fogo a alguns quilômetros de distância. Poderíamos alcançá-las, se quiséssemos. Ou poderíamos apagá-las. A terra é o centro do universo. O sol e as estrêlas giram em tôrno dela.

Winston fez outro movimento convulso. Desta vez porém não disse nada. O'Brien continuou, como se respondesse a uma objeção falada:

- Naturalmente, isso não é verdade, para certos propósitos. Quando navegamos no oceano, ou quando predizemos um eclipse, muita vez nos convém supor que a terra rode em tôrno do sol e que as estrêlas estão a milhões e milhões de quilômetros de distância. E daí? Imaginas que não podemos produzir um sistema dual de astronomia? As estrêlas  podem estar longe ou perto, conforme precisarmos. Supões que os nossos matemáticos não dão conta do recado?

esqueceste do duplipensar?

Winston encolheu-se na cama. Dissesse o que dissesse, a pronta resposta esmagava-o como uma paulada. E no  entanto sabia, sabia que tinha razão. A teoria de que nada existe fóra da mente humana - com certeza havia um meio  de demonstrá-la falsa? Não fôra denunciada e provada falsa, havia muito tempo? Isso até tinha um nome, que êle  esquecera. Um vago sorriso animou as comissuras dos lábios de O'Brien, que voltara a fitá-lo:

- Eu te disse, Winston, que a metafísica não era o teu forte. A palavra que estás procurando encontrar é "solip[1]sismo". Mas estás enganado. Não é solipsismo. Solipsismo coletivo, se quiseres. Mas é diferente: na verdade, é o oposto. Tudo isto não passa de digressão - acrescentou, em tom mudado. - O verdadeiro poder, o poder pelo qual  temos de lutar dia e noite, não é o poder sôbre as coisas, mas sôbre os homens. - Fez uma pausa e por um momento  tornou a assumir o ar de mestre-escola interrogando o aluno esperto:

- Como é que um homem afirma o seu poder sôbre outro, Winston?

Winston refletiu.

- Fazendo-o sofrer.

- Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como podes ter certeza de que êle  obedece tua vontade e não a dêle? O poder reside em infligir dor e humilhação. O poder está em se despedaçar os  cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos  criando? É exatamente o contrário das estúpidas utopias hedonísticas que os antigos reformadores imaginavam. Um  mundo de medo, traição e tormento, um mundo de pisar ou ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais  impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor. As  velhas civilizações proclamavam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras emoções além do medo, fúria, triunfo e auto-degradação. Destruiremos tudo mais - tudo. Já estamos liquidando os hábitos de pensamento que sobreviveram de antes da Revolução. Cortamos os laços entre  filho e pai, entre homem e homem, entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na espôsa, no filho ou no  amigo. Mas no futuro não haverá espôsas nem amigos. As crianças serão tomadas das mães ao nascer, como se tiram os ovos da galinha. O instinto sexual será extirpado. A procriação será uma formalidade anual como a renovação de um talão de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando nisso. Não haverá lealdade, excepto lealdade ao Partido. Não haverá amor, excepto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, excepto o riso de vitória sôbre o inimigo derrotado. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá mais distinção entre a beleza e a feiura.

 

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