http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_george_orwell_1984.pdf
“ | Saber e não saber, estar consciente de sua completa sinceridade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões que se cancelam mutuamente, sabendo que se contradizem, e ainda assim acreditar em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade e apropriar-se dela, crer na impossibilidade da Democracia e que o Partido era o guardião da Democracia; esquecer o quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza máxima: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra "duplipensar" era necessário usar o duplipensar. |
“ | O poder de manter duas crenças contraditórias na mente ao mesmo tempo, de contar mentiras deliberadas e ao mesmo tempo acreditar genuinamente nelas, e esquecer qualquer fato que tenha se tornado inconveniente. |
A sala 101
- Existe o Grande Irmão?
- Naturalmente existe. O Partido existe. O Grande Irmão é a
corporificação do Partido.
Mas existe da mesma maneira que eu existo? Tu não existes.
De novo a sensação de impotência o assaltou. Sabia, ou podia imaginar, os
argumentos que provavam sua não-existência; mas eram insensatos, não passavam
de jôgo de palavras. Não continha a afirmativa "Tu não existes" um
absurdo em lógica? Mas de que adiantava dizê-lo? Sua mente encolhia-se só de
pensar nos argumentos loucos, irrespondíveis, com que O'Brien o demoliria.
- Creio que existo - respondeu. - Tenho consciência de minha
própria identidade. Nasci, e morrerei. Tenho braços e pernas. Ocupo um
determinado ponto no espaço. Ao mesmo tempo, nenhum outro sólido pode ocupar o
mesmo ponto. Nesse sentido, existe o
Grande Irmão?
- Não tem importância. Existe.
- O Grande Irmão morrerá?
- Lógico que não. Como poderia morrer? Outra pergunta.
- Existe a Fraternidade?
- Isso nunca saberás, Winston. Se resolvermos te pôr em
liberdade quando acabarmos a tarefa, e mesmo que vivas até os noventa, nunca
saberás se a resposta a essa pergunta é Sim ou Não. Enquanto viveres será um
enigma insolvível na tua cabeça.
Winston guardou silêncio. Seu peito ofegou um pouco mais
depressa. Ainda não fizera a pergunta que lhe viera em primeiro lugar à mente. Tinha de fazê-la, e no
entanto era como se a língua se recusasse. Havia uma sombra de jocosidade no rosto de O'Brien. Até os seus
óculos pareciam despedir lampejos irônicos. Êle sabe, pensou Winston de repente,
êle sabe o que vou perguntar! E a isso as palavras lhe brotaram dos lábios:
- O que é a Sala 101? Não mudou a expressão do rosto de O'Brien.
Respondeu secamente:
- Sabes o que há na Sala 101, Winston. Todo mundo sabe o que
há na Sala 101.
Apontou com o dedo o homem de branco. Evidentemente.,
encerrara-se a sessão. A agulha mergulhou no braço de Winston. Quase
imediatamente êle mergulhou no sono profundo.
- Há três estágios na tua re-integração - disse O'Brien.
-
Aprender, compreender e aceitar. É hora de iniciares o segundo.
Como sempre, Winston jazia em decúbito dorsal. Mas já não se
sentia tão fortemente ligado. Ainda estava amarrado à cama, porém podia mexer
um pouco os joelhos, mover a cabeça de um lado para outro e levantar os braços,
dobrando os cotovelos. O mostrador,
também, já não o aterrorizava tanto. Podia fugir às suas picadas se fosse bastante alerta: em geral era quando
demonstrava estupidez que O'Brien acionava a alavanca. Às vezes, atravessavam uma sessão inteira sem que o
aparelho fosse usado. Não podia lembrar-se de quantas sessões sofrera.
Todo o processo parecia prolongar-se por um período enorme,
indefinido - semanas, possívelmente - e o intervalo entre as sessões às vezes era de alguns dias,
outras de apenas uma hora ou duas.
- Enquanto estás aí deitado - disse O'Brien - muitas vezes
perguntas a ti mesmo... e até a mim... por que é que o Ministério do Amor gasta tanto tempo e tanto
esfôrço contigo. E quando eras livre também te admirava essencialmente a mesma
pergunta. Podias perceber a mecânica da sociedade em que vivias, mas não os
motivos orientadores. Lembras-te de que
escreveste no teu diário "Compreendo como; não compreendo por que?"
Era quando pensavas no por que" que duvidavas do teu estado mental. Leste
o livro, o livro de Goldstein, ou trechos dêle, pelo menos. Reveloute alguma
coisa que já não soubesses?
- Leste o livro?
- Eu o escrevi. Isto é, colaborei na sua autoria. Nenhum
livro é produzido individualmente, como sabes.
- E é verdade o que diz o livro?
- Como descrição é. O programa que estabelece é insensato. O
entesouramento secreto da sabedoria... a propagação gradual do
esclarecimento... por fim uma rebelião proletária... a derribada do Partido. Tu
mesmo previste o que êle diria. É tudo bobagem. Os proletários nunca se
revoltarão, em mil anos, ou num milhão de anos., Não podem. Não preciso
dizer-te a razão: já a conheces. Se algum dia acariciaste sonhos de insurreição
violenta, deves abandoná-los.
Não há maneira de se deitar o Partido abaixo.
O domínio do Partido é eterno. Isso deve ser o ponto de
partida dos teus pensamentos.
Aproximou-se mais da cama.
- Eterno! - repetiu. - E agora, voltemos à questão do como e
do por que. Compreendes bem como o Partido se mantém no poder. Agora, dize-me,
porque nos agarramos ao poder. Qual é o nosso motivo? Por que devemos querer o
poder? Vamos, fala - acrescentou, vendo que Winston calava.
Não obstante, Winston continuou calado por mais alguns
instantes. Dominara-o uma profunda sensação de cansaço.
Voltara ao rosto de O'Brien o débil e dôido lampejo de
entusiasmo. Êle sabia de antemão o que diria Ó'Brien. Que o Partido não buscava
o poder em seu próprio benefício, mas pelo bem da maioria. Que procurava o
poder porque os homens da massa eram criaturas débeis e covardes que não podiam
suportar a liberdade nem enfrentar a verdade, e que deviam ser dominados e
sistemàticamente defraudados por outros, mais fortes que êles. Que para o
gênero humano a alternativa era liberdade ou felicidade e que, para a grande
maioria, era preferível a felicidade. Que o Partido era o eterno guardião dos
fracos, uma seita dedicada fazendo o mal para que o bem pudesse reinar, sacrificando
sua própria felicidade à felicidade alheia. O terrível, raciocinou Winston, o
terrível era que, dizendo isso, O'Brien estaria sendo sincero. Via-se-lhe na fisionomia.
O'Brien sabia tudo. Mil vezes melhor que Winston, sabia como o mundo era, na
realidade, em que degradação vivia a massa dos seres humanos e por meio de mentiras
e barbaridades o Partido os mantinha nesse nível. Compreendia tudo, pesava-o, e
não fazia diferença: era tudo justificado pelo intuito derradeiro.
Que podes fazer, pensou Winston, contra o lunático que é
mais inteligente que tu, que ouve equânime os teus argumentos e simplesmente
persiste na sua loucura?
- Vós nos governais em nosso próprio benefício - disse, com
um fio de voz. - Acreditais que os seres humanos não têm capacidade para se
governar e porisso...
Deu um estremeção e quase gritou. Uma descarga dolorosa lhe
percorrera o corpo. O'Brien levara ao trinta e cinco o ponteiro do aparelho.
- Isso foi cretino, Winston, cretino! Bem sabes que não
devias dizer uma coisa dessas.
Levou a alavanca à posição neutra e continuou:
- Eu responderei minha pergunta. O Partido procura o
poder por amor ao poder. Não estamos interessados no bem estar alheio; só estamos
interessados no poder. Nem na riqueza, nem no luxo, nem em longa vida de
prazeres: apenas no poder, poder puro.
O que significa poder puro já compreenderás, daqui a pouco. Somos diferentes de
todas as oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos fazendo. Todas as
outras, até mesmo as que se assemelhavam conosco, eram covardes e hipócritas.
Os nazistas alemães e os comunistas russos muito se aproximaram de nós nos
métodos, mas nunca tiveram a coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam,
talvez até acreditassem, ter tomado o
poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a esquina para
entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres. Nós não somos
assim. Sabemos que ninguém jamais toma o poder com a intenção de largá-lo. O
poder não é um meio, é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura com o fito
de salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura.
O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da
tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora começas a me compreender?
Winston ficou admirado, como já ficara antes, pelo cansaço
do rosto de O'Brien. Era forte, carnudo e brutal, cheio de inteligência e de uma espécie de paixão
controlada diante da qual êle se sentia inerme; mas estava cansado. Tinha olheiras
fundas, e as bochechas estavam flácidas. O'Brien inclinou-se sôbre êle,
aproximando de propósito a cara gasta.
- Estás pensando que meu rosto está velho e cansado. Estás
pensando que falo do poder, e no entanto não consigo deter a deterioração do meu próprio corpo. Não
podes com[1]preender, Winston,
que o indivíduo é apenas uma célula?
O cansaço da célula é o vigor do organismo. Acaso morres
quando aparas as unhas?
Afastando-se da cama e pôs-se a passear de um lado para
outro, com a mão na algibeira.
- Somos os sacerdotes do poder - disse...Mas no momento,
para ti, poder é apenas uma palavra. É tempo de teres uma idéia do que
significa poder. A primeira coisa que deves entender é que o poder é coletivo.
O indivíduo só tem poder na medida em
que cessa de ser indivíduo. Conheces o lema do Partido: "Liberdade é Escravidão."
Já te ocorreu que é reversível? Escravidão é liberdade. Sózinho, livre, o ser
humano é sempre derrotado. Assim deve ser, porque todo ser humano está
condenado a morrer, que é o maior dos fracassos. Mas se puder realizar uma
submissão completa, total, se puder fugir à sua identidade, se puder fundir-se
no Partido então êle é o Partido, e é onipotente e imortal. A segunda coisa que
deves entender é que poder é o poder sôbre todos os entes humanos. Sôbre o corpo mas, acima de
tudo, sôbre a mente. O poder sôbre a matéria - realidade externa, como a chamarias -não é importante. E o nosso poder
sôbre a matéria já é absoluto.
Por um momento, Winston ignorou o mostrador. Fez um violento
esfôrço para se sentar, e só conseguiu torcer o corpo dolorosamente.
- Mas como podes controlar a matéria? - explodiu.
- Não consegues nem dominar o clima nem a lei da gravidade.
E há a doença, a morte, a dor...
O'Brien calou-o com um gesto.
- Controlamos a matéria porque controlamos a mente. A
realidade está dentro da cabeça. Aprenderás aos poucos,
Winston. Não há nada que não possamos fazer. Invisibilidade,
levitação. .. tudo. Eu poderia flutuar no ar, como uma bolha de sabão, se quisesse. Mas não quero,
porque o Partido não o deseja. Deves abandonar essas idéias século dezenove a respeito das leis da Natureza. Nós
fazemos as leis da natureza! Não fazeis! Não sois donos do planeta. E a Eurásia e a Lestásia? Ainda não as
vencestes.
-Não
importa. Haveremos de dominá-las quando nos convir. E se não, que diferença
faz? Podemos bani-las da exístencia.
A Oceania é o mundo.
- Mas se o mundo não passa dum grão de pó! E o homem é
minúsculo - inerme! Há quanto tempo existe? Durante milhões de anos a terra foi
desabitada.
- Tolice. A terra é tão velha quanto o homem, e nada mais.
Como poderia ser mais velha? Nada existe excepto pela via da consciência humana.
- Mas as rochas estão cheias de ossos de animais extintos -
mamutes, mastodontes, e répteis enormes que viveram aqui muito antes do homem
aparecer.
- Já viste êsses ossos, Winston? Naturalmente não. Os
biólogos do século dezenove os inventaram. Antes do homem, não havia nada.
Depois do homem, se por acaso acabasse, nada haveria. Fóra do homem não há
nada.
- Mas o universo inteiro está fora de nós. Considera as
estrelas. Algumas estão a um milhão de anos-luz de distância.
Estão para sempre fóra de nosso alcance.
- Que são estrelas? - indagou O'Brien, indiferente.
- São pedacinhos de fogo a alguns quilômetros de distância.
Poderíamos alcançá-las, se quiséssemos. Ou poderíamos apagá-las. A terra é o
centro do universo. O sol e as estrêlas giram em tôrno dela.
Winston fez outro movimento convulso. Desta vez porém não
disse nada. O'Brien continuou, como se respondesse a uma objeção falada:
- Naturalmente, isso não é verdade, para certos propósitos.
Quando navegamos no oceano, ou quando predizemos um eclipse, muita vez nos
convém supor que a terra rode em tôrno do sol e que as estrêlas estão a milhões
e milhões de quilômetros de distância. E daí? Imaginas que não podemos produzir
um sistema dual de astronomia? As estrêlas podem estar longe ou perto, conforme
precisarmos. Supões que os nossos matemáticos não dão conta do recado?
esqueceste do duplipensar?
Winston encolheu-se na cama. Dissesse o que dissesse, a
pronta resposta esmagava-o como uma paulada. E no entanto sabia, sabia que tinha razão. A teoria
de que nada existe fóra da mente humana - com certeza havia um meio de demonstrá-la falsa? Não fôra denunciada e
provada falsa, havia muito tempo? Isso até tinha um nome, que êle esquecera. Um vago sorriso animou as
comissuras dos lábios de O'Brien, que voltara a fitá-lo:
- Eu te disse, Winston, que a metafísica não era o teu
forte. A palavra que estás procurando encontrar é "solip[1]sismo". Mas
estás enganado. Não é solipsismo. Solipsismo coletivo, se quiseres. Mas é
diferente: na verdade, é o oposto. Tudo isto não passa de digressão -
acrescentou, em tom mudado. - O verdadeiro poder, o poder pelo qual temos de lutar dia e noite, não é o poder
sôbre as coisas, mas sôbre os homens. - Fez uma pausa e por um momento tornou a assumir o ar de mestre-escola
interrogando o aluno esperto:
- Como é que um homem afirma o seu poder sôbre outro,
Winston?
Winston refletiu.
- Fazendo-o sofrer.
- Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A
menos que sofra, como podes ter certeza de que êle obedece tua vontade e não a dêle? O poder
reside em infligir dor e humilhação. O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma
que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando? É exatamente o contrário das
estúpidas utopias hedonísticas que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo de
pisar ou ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina. O progresso
em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor. As velhas civilizações proclamavam-se fundadas no
amor ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras
emoções além do medo, fúria, triunfo e auto-degradação. Destruiremos tudo mais
- tudo. Já estamos liquidando os hábitos de pensamento que sobreviveram de
antes da Revolução. Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem, entre mulher
e homem. Ninguém mais ousa confiar na espôsa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá espôsas nem
amigos. As crianças serão tomadas das mães ao nascer, como se tiram os ovos da
galinha. O instinto sexual será extirpado. A procriação será uma formalidade
anual como a renovação de um talão de racionamento. Aboliremos o orgasmo.
Nossos neurologistas estão trabalhando nisso. Não haverá lealdade, excepto
lealdade ao Partido. Não haverá amor, excepto amor ao Grande Irmão. Não haverá
riso, excepto o riso de vitória sôbre o inimigo derrotado. Não haverá nem arte,
nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, não teremos mais
necessidade de ciência. Não haverá mais distinção entre a beleza e a feiura.
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